Sexta-feira, Setembro 30, 2005

Tonan, O Barbariano - 6ª Parte

(ANTES DE MAIS, E DEVIDO AO GRANDE INTERVALO DE TEMPO ENTRE O ÚLTIMO CAPÍTULO E O ACTUAL, URGE FAZER UM RESUMO DA HISTÓRIA ATÉ ESTE PONTO)



  • Entra em cena Tonan, o Barbariano, imundo salteador e temido morador da Floresta Negra.
  • Após intensa sessão de brainstorming entre os seus dois neurónios (coisa rara!), Tonan decide rumar a Tarkul, capital de Takar, no intuito de... bem, não vamos já estragar a surpresa ao leitor, não é? Mais vale dizer que o herói morre no fim... oh, porra!
  • Cena de acção na qual Tonan despacha uma patrulha de soldados. Alguma violência gratuita.
  • Mudança de cenário: na estrada para a capital, encontramos o jovem Vitus, aprendiz de feiticeiro, também conhecido como “o Vitalho, cabeça de ca...”
  • Vitus encontra Tonan, mas este não parece estar na melhor das suas más disposições e demonstra-o, prontamente, arrancando várias árvores pela raíz e lançando-as a uma distância considerável. Vários recordes de lançamento de dardo e peso são batidos.
  • Vitus, em pânico, urina na túnica. Ah, e ainda consegue conjurar um misterioso feitiço contra o seu obtuso agressor...


TONAN, O BARBARIANO – CAPÍTULO VI – IT´S MAGIC, YOU IDIOT!



“­ – Crescepello!”

A complexidade do campo da magia é algo que continua a maravilhar até os mais eruditos. A enorme variedade de fórmulas e conjurações existentes só é ultrapassada pela miríade de aplicações diferentes que o engenho humano, sempre adaptável, se lembra de conceber. Se para fins nobres ou... não tão nobres, tal não podemos assertoar com exactidão.
No entanto o sempre avisado leitor, conhecedor da natureza humana, decerto terá ideia da proporção entre os honestos aplicadores da magia e os que lhe dão pérfido uso.
Tal como no mundano dia-a-dia, também no plano arcano existe um cisma entre benfeitores e charlatães, entre altruístas e egoístas, entre homens santos e imundos filhos da puta, incluindo a mãe.
Retrato vivo desse cisma é a rivalidade entre os paladinos da Irmandade do Pastel (um grupo secreto que se esconde sob a fachada de um clube gastronómico) e a Sociedade de Prião, um enorme consórcio de Guildas mágicas e outros representantes desonestos como banqueiros, conselheiros reais, macumbeiros e cartomantes (por ordem crescente de inocuividade).

Mas divago.

“ – Crescepello!” – bradou Vitus, uma aura verde-alface emanando de si, qual Maria José Valério.
Quase imediatamente, Tonan sentiu um formigueiro percorrer-lhe o corpo todo.
“Que diabo”, pensou. Não podiam ser pulgas. Essas, as carraças e demais parasitas há muito que tinham desistido de povoar tão hedionda epiderme.
Só então Tonan reparou que a sua pilosidade corporal, já de si equiparável à de um mamute, aumentava a olhos vistos! Em pouco tempo, os seus pêlos estavam tão crescidos que Tonan não pôde evitar tropeçar e enrodilhar-se neles, ficando convenientemente bem amarrado no processo.
“ – Ha ha ha! Não pensavas poder comparar-te ao grande Invictus, o Mago Supremo!” – Vitus quase voltava a molhar a túnica com a emoção – “Na na na, nem penses nisso!” – Tonan, passada a surpresa inicial, tentava soltar-se daquela prisão capilar.
“ – Queres voltar a provar outro dos meus potentes feitiços? Garanto-te que o próximo não será tão meigo para com a tua pessoa!”

Tal bravata esganiçada não correspondia nem de perto nem de longe à realidade. De facto, “Crescepello” era o único feitiço do currículo de Vitus que se podia considerar vagamente ofensivo. Vitus era licenciado em “Iniciação às Artes Místicas e Afins” pelo famigerado Professor Kibomba, reputado vidente/aldrabão, procurado em três países por fraude e burla agravada. Actualmente, encontra-se em parte incerta – não sem antes se ter eclipsado com as propinas dos seus pupilos; a meio do curso, entenda-se.
Na verdade, “Crescepello” foi criado, sabe-se lá quando, por um feiticeiro amador, barbeiro de profissão, quiçá por falta de clientela.
Muito simplesmente, bastava ao dito escanhoador sussurrar a fórmula mágica a qualquer incauto que lhe passasse à porta do estabelecimento...
Mas tal história não estava destinada a ter um final feliz, pois é sabido que a Fortuna (leia-se capricho do autor) dá e tira com igual celeridade.
Pois então o anónimo baeta, na ânsia de aumentar os seus dividendos, teve a triste ideia de mudar para o ofício de cabeleireiro. Ora, se até aqui o desmesurado crescimento da barba e cabelo dos seus clientes não lhe proporcionava senão avultada freguesia e gorjeta, o mesmo não sucedeu com as suas clientes. Poupamos os leitores sensíveis às cenas de indizível horror e violência que tiveram lugar naquele salão, quando respeitáveis aristocratas se viram, de um momento para o outro, cobertas por uma espessa carpete capilar...
Por fim, aleijado, falido pelos processos em tribunal e com a reputação arruinada, decidiu pegar na sua fiel navalha e... ZÁS! Cortou ambas as patilhas; não queria ser reconhecido quando saísse do país...

“ – Muahahahaha! Irónico, não, Barbariano? Um home...euh, um animal tão possante e não se consegue desembaraçar de si mesmo!” – Vitus voltou ao ataque, inspirado – “Mas se nem eu me consigo desembaraçar de mim mesmo, desta inconstância do ser,desta consciência do sofrimento... desta... desta murzels and the freckles and the beautiful fireworks exploding into the sky e...”

>>BOUM!<<



O punho de Tonan descera sobre a cabeça de Vitus com óbvio momento linear. Mas, coisa incomum, Vitus limitou-se a deslizar para o solo e permanecer lá, inconsciente. Os seus olhos não saltaram das órbitas, nem o seu crânio se abriu, nem o conteúdo polposo e cinzento se espalhou por todo o lado.

Não, Vitus estava vivo. Pois era essa a vontade de Tonan.

(continua...)

Etiquetas:

Quinta-feira, Janeiro 20, 2005

Tonan, O Barbariano - 5ª Parte

O recém-iniciado nas Artes Místicas e Afins (não confundir com Artes Arcanas, Marciais E Outras Que Tais, um canudo tão desejado como difícil de obter) olhava, incrédulo e apavorado, para a inverosímil personagem à sua frente. O terrível Barbariano com que se deparava fazia mais que juz às medonhas histórias que o infeliz pseudomago ouvira na sua infância, com a agravante de vir acompanhado do factor "cheiro", uma sensação tão desagradavelmente pungente que quase fizera o pobre e cabeçudo aprendiz esquecer as vestes urinadas (que por pouco também não borrara de medo)...
- "Ughar! Ittuk!" - grunhiu Tonan, pois este era o nome pelo qual era conhecido o temível salteador, molestador de frades e devorador de criancinhas (não, não os troquei). Encontrava-se desarmado pois perdera as suas armas na longa viagem desde a Floresta Negra até à Orla.
Poderia pensar-se que a sua natureza animalesca o tivesse tornado desajeitado ao ponto de perder os seus utensílios por pura inconsciência. Tal era não apenas uma dedução incorrecta como também uma subestimação grosseira, pois qualquer arma resistia pouco tempo a Tonan, último dos Gu'Man, devido ao tremendo desgaste que sofria nas mãos desse virtuoso carniceiro. Apenas um instrumento em particular resistia a tal manipulação, mas não reproduzirei aqui a sua descrição para evitar ferir as mentes mais susceptíveis...
Era, pois, um Barbariano desarmado que se apresentava ao jovem aprendiz, o que de maneira nenhuma o tranquilizava. Já tinha visto aqueles poderosíssimos braços em acção quando o selvagem, num ataque de fúria (os leitores assíduos decerto recordarão o pitoresco episódio), arrancara metade das árvores do bosque em que se encontravam. Aquela zona da Orla - o nome dado à região da periferia de Tarkul, cidade capital de Takar - fora conhecida pela beleza da sua floresta de coníferas, da sua fauna delicada de corças e felpudos esquilos... Agora, com a sua vegetação devastada, o ar conspurcado pelo fedor pestilencial, a bicharada pisada e devorada, a sua beleza fora-se para sempre. Assim era onde quer que passasse Tonan.
- "Ughar! Ittuk!" - repetiu Tonan, feito notável para algo com uma mente tão rudimentar.
O semifeiticeiro indagava-se acerca de tais grunhidos quando se tornou claro o seu significado: Tonan corria na sua direcção, uma fúria insana no seu olhar!
Genuinamente aterrorizado, o jovem mágico pré-amador invocou, como recurso desesperado, o único encantamento ofensivo que aprendera em toda a sua vida:
- "Crescepello!!!"

(fim da 5ª Parte)

Etiquetas:

Quinta-feira, Outubro 28, 2004

Tonan, o Barbariano - 4ª Parte

"Olha qui coisa tão linda, tão cheia dji graça, é a não-sei-quantas qui coiso, a mina qui passa, é a coisa mai linda qu'eu já vi passaaar..."
Assim trauteava o cabeçudo aprendiz de feiticeiro aquela velha música das praias de Titiloqui, o país mais solarengo do grande continente de Takar. Sob domínio Pharpal, podia não ter a aura de sofisticação e requinte de Létis, a sua homóloga Tartaglionesa, mas compensava-o com o seu clima quente e a sua exótica fauna local. Por assim dizer...
O jovem fazia esvoaçar a túnica encardida enquanto saltitava pelo carreiro que atravessava o bucólico bosque, degustando aquelas saudosas recordações da sua viagem de fim de curso, a lembrança daqueles cálidos encontros com as jovens «titilôcas» (e também as não muito jovens, diga-se de passagem) ainda acariciando a sua memória... Ao ponto de ter de compor, dissimuladamente, uma prega no manto.
Não havia passado muito tempo desde que concluira o curso de Iniciação às Artes Místicas e Afins na Faculdade de Ciências Mágicas, nas soalheiras encostas de Capanova, uma localidade no pequeno país de Gurtapol.
Bom, não era o mesmo que um canudo em Iniciação às Artes Arcanas, Marciais e Outras Que Tais, na mítica Cidade-Fortaleza-Universidade de Oxifarad, nas agrestes montanhas de Shrlombo-Tim, mas já era alguma coisa. Era uma rampa para se lançar em estágios mais elaborados, e quiçá até um Mestrado!
Pelo menos fora o que lhe garantira o velho Professor Kibomba, o seu tutor durante as árduas duas semanas de curso.
"Tu lembra di qui este curso, apesar di útil, não chegará pra desenrascar! Lembra di qui ainda tem qui ler muita folha de chá e tripa de saguim pra chegar à unha do pé di qualquer grandi sábio! Tu lembra ainda de que......
...Chi, esqueci!"
Fora a última vez que vira o velho sábio antes deste desaparecer misteriosamente para destino incerto, com a igualmente incógnita quantia que cobrara como propina aos alunos inscritos (sim, todos os nove! Os Nove? Hum... Será que?... Nahhh)
Mas tinha o seu canudo! E apesar de ter perdido a conta ao número de vezes que lhe bateram a porta na cara, lhe chamaram "Palhaço!" ou atiraram lama (queria pensar que era lama), nunca desistiu de procurar o seu lugar no conturbado mundo de então.
Até aquele momento. Estava farto. Preferia viver como um eremita porco e sujo na Floresta Negra do que continuar a gramar aquelas merdas.
Olhou para o seu canudo como se fosse um bocado de papel higiénico várias vezes reutilisado, e lançou-o com um grito de raiva para lá das árvores que o rodeavam...
...até que o ouviu embater em algo que, julgara, seria grande e pesado. Não pelo ruído que o canudo fizera ao bater. Antes pelo tamanho das árvores que começaram a ser arrancadas na curta distância que o separava daquilo... A facilidade com que eram lançadas vários metros acima e além da sua cabeça também não o tranquilizava.
O terror que dele se apossara já lhe tinha ensopado as vestes quando se encontrou, finalmente, frente a frente com a temível criatura. Era mais baixa do que estava à espera, mas isso não queria dizer nada. Tinha um aspecto que feria só de olhar, e do cheiro nem falar. Tinha uns desenhos no corpo que faziam lembrar o rapaz de umas histórias que ouvira enquanto criança, de uns vagabundos meio tresloucados que gostavam de andar à bulha e de apanhar grandes bebedeiras...

Sim, só podia ser! Estava a olhar para um Barbariano!

(fim da 4ª Parte)

Etiquetas:

Segunda-feira, Agosto 16, 2004

Tonan, o Barbariano - 3ª Parte

A estrada de terra batida encontrava-se menos poeirenta do que o costume. Normalmente era na época das monções (em que a vegetação da Floresta Negra se mostrava ainda mais encaracolada e propensa a piadas de mau gosto do que o costume) que as paupérrimas vias de trânsito se encontravam alagadas, transformando-se em rios de lama mais propícios à navegação do que às caravanas de carroça.
No entanto estavamos a meio da estação seca. A estrada estava ensopada, sim, mas não era de água. Não, era de...
- Sangue! aArrGhhh!!
Uma cabeça decepada voou pelo ar, indo cair junto de uma toca de répteis que, agradecidos, começaram imediatamente a descarnar a iguaria.
O grupo de soldados recuou, assustado, enquanto o corpo decapitado do seu capitão escorregava para o chão. Na lama avermelhada jaziam já metade dos seus companheiros, ou o que restava deles.
No meio dos cadáveres estava a figura que lançara o grito.
Tonan, o último dos Gu'Man, podia não saber contar os dedos da própria mão direita ou distinguir um verso arcano de uma esgichadela de babuíno com disenteria, mas lá que era um ás no que se tratava de cortar, mutilar, torturar, rasgar e trincar as carnes alheias, isso era. E com que brio Tonan abria o peito de um soldado só para lhe arrancar o coração e o meter na boca de um segundo, este empalado na lança com um terceiro! Para não falar dos que agonizavam e rodavam no espeto, sem braços nem pernas, enquanto o lume brando lhes prolongava o sofrimento...
Era com estes mimos que Tonan, esse Barbariano, presenteava os que tinham a infelicidade de o encontrar no caminho, fossem monjes estóicos, velhos mendigos, virgens imaculadas ou até bebés de colo (irra, que ainda vou preso!).
O que restava do grupo de soldados debandou em pânico, correndo em todas as direcções até chocar contra uma árvore ou cair de algum penhasco.
Tonan ignorou a fuga e começou a pensar no que iria fazer a seguir.
Não conseguiu.

(fim da 3ª Parte)

Etiquetas:

Tonan, o Barbariano - 2ª Parte

Despontava um novo dia na Floresta Negra, o que era o mesmo que dizer porra nenhuma. Era um pardieiro sem o mínimo interesse, cuja vegetação encaracolada se repetia monotonamente até ao horizonte, para desespero dos amantes de discrições tolkianas de paisagens exuberantes.
Era por entre este esgoto botânico que Tonan se movimentava, ágil e rápido como uma lesma paralítica, tropeçando em cada galho e caindo em cada buraco. Ao fim da enésima esfoladela, Tonan sacudiu o pó do seu corpo tatuado - invariavelmente com figuras de mulheres nuas em poses mais que chocantes e outros arabescos de duvidosa moralidade - ao mesmo tempo que pensava na distância que o separava ainda da civilização.
Não que ansiasse por água corrente ou comida no prazo de validade, tais bens nada diziam a Tonan: eram o refúgio dos fracos.
Não, o que Tonan desejava era SANGUE! Cortar as orelhas daqueles aprumadinhos da cidade, violar-lhes as mulheres, fritar-lhes os animais de estimação em óleo de cinco dias... Isso tudo, por esta ordem ou até ao mesmo tempo, sim, isso tudo Tonan lhes faria, pois tal não era mais do que o retrato fiel da sua natureza animalesca.
A natureza de um verdadeiro Barbariano.

(fim da 2ª Parte)

Etiquetas:

Sábado, Maio 22, 2004

Hecatombe V - Atãomasatão e agora?

"Vais pagá-las, meu malandro, vais pagá-las bem caro, vou-te mataarr!!!"

Cherneboff lançou o seu corpo flácido numa carga frontal, disposto a obliterar o seu oponente com o maior dano possível!
Mas Enguia estava plácido, impassível perante uma visão que faria tremer o mais rijo dos Veterânus Kombatentes...

Mesmo no último instante esquivou-se com um salto fantástico, enquanto Cherneboff arrasava filas inteiras de bonitos assentos com estofo azul, uma maravilha quando estamos no cinema e nos começa a doer o rabo... Barão Enguia, agarrado ao tecto do Auditorium - a extrema oleosidade dos seus cabelos revelava-se uma mais-valia nas situações mais apertadas - não tardou na resposta: apontando os micro-lançadores que protuberavam de cada orelha, libertou uma barragem de TAKTIKOV's mortíferos sobre o inimigo distraído.
Os micro-misséis TAKTIKOV(tm), tal como o seu inventor, não são para ser subestimados; apesar do seu tamanho "mini", portam uma potência devastadora que, aliada ao seu sistema de busca de alvos - capaz de guiar, inofensivamente, um missíl por dentro de um ratinho, desde a boca até ao... pronto, vocês sabem -, tornam-no no artefacto bélico mais avançado do mundo (...do mundo lusitano, pelo menos. Não queriam mais nada?).

Foi assim que cada missíl encontrou e detonou precisamente no alvo escolhido: o esfíncter anal de Cherneboff!
Este inchou com um ruído de gases, até que rebentou numa bola de fogo laranja (tinha de ser...), espalhando bocados em volta e formando um quadro tão nojento que só de falar nisso me dá vómitos.

O nosso (anti)herói limpava o suor da testa às costas da mão, quando um murmúrio crescente lhe chamou a atenção.
Olhou em volta, e foi com mal disfarçado espanto que viu que os bocados de Cherneboff se juntavam, qual caricatura de Bubu, numa forma vagamente semi-humana. Só depois é que Enguia reparou na plateia de apoiantes, incitando e dando graxa de uma maneira que meteria dó se estas criaturas não fossem tão detestáveis como o próprio líder.

Barão Lampr... Enguia (uuups) jizou um plano. Eliminaria os sequazes do vilão duma vez só, mas não da mesma maneira: não podia correr o risco de estes lhe ressuscitarem à frente dos olhos, era um desperdício de munição!

Falando para o microfone - habilmente camuflado no palito que tinha nos dentes - acedeu ao sistema de armas:

- Alterar configuração. Password: "The Trooper".

(uma voz metálica) - Password aceite.

- Configuração de ogiva: TAKTIKOV Luxury.

Um clique imperceptível indicou-lhe que o sistema aceitara as alterações. Que diferença para o sistema anterior! O outro, volta e meia, lá aparecia a merda do ecrã azul a dizer blah, blah, fatal error... Este podia ter um pinguim como símbolo, mas era infinitamente mais fiável.
O Barão disparou uma salva dos novos foguetes direitinha aos vermes de Cherneboff. Estes encolheram-se na antecipação do impacto, mas tudo o que lhes sucedeu foi serem envolvidos por uma nuvem cor-de-rosa perfumada...
É que estas ogivas, ao contrário das anteriores, não eram explosivas. O que não queria dizer que fossem inofensivas. As ogivas Luxury, como o nome indica, mergulham o alvo num turbilhão de lascívia incontrolável, que só termina com a morte da vítima por exaustão. Isto só é possível graças ao cocktail químico à base de ostra e Casal Garcia - uma para excitar, o outro para desinibir. Sem dúvida uma invenção "after-hours" de Enguia no seu gabinete... o malandreco.

Foi assim que a trupe de Cherneboff, de início com relutância mas depois já com mais à-vontade, se começou entremirando e entreapreciando, para depois se acabar entremeando numa confusão de gritos e gemidos, pernas, braços e outros membros...
Barão Enguia, apesar da sua veteranice nestes assuntos, desviou o olhar ante espectáculo tão degradante.

Foi assim que não descortinou a massa viscosa do traiçoeiro Cherneboff a insinuar-se nas suas costas... Este atacou com fúria animalesca, envolvendo--o e deglutindo-o de uma só vez!

Os alunos sobreviventes olhavam, primeiro incrédulos, depois desesperados perante a cruel evidência dos factos: Barão Enguia já não existia.
E agora? Que seria da liberdade de pensamento, da alegria académica, da irreverência estudantil? O panorama era ainda mais negro do que se o Barão não tivesse aparecido...

Cherneboff, no meio de tudo isto, achava-se impante de satisfação, a glória da vitória fazia-o transbordar de felicidade... Peraí.

"Ahh, Felicidade... Todo mundo gosta!" As reminescências de um concerto de Hélder, Rei do Kuduro, ecoavam na sua mente. Como? Se nem os tons agudos da sua tripa flatulenta constituiam gosto musical para Cherneboff.

A resposta estava em Enguia. Ou melhor, não estava, uma vez que Enguia se encontrava agora dissociado e atomizado por todo o interior de Cherneboff, o seu ser tão puro de energia animal como no início da Noite Académica.

O potencial da descoberta foi demais para Cherneboff. O seu ego pérfido vacilou, tal como vacilou em seguida o seu fedorento envólucro.
No fim, Cherneboff soçobrou para jamais se voltar a erguer...

Os que sobreviveram à ruinosa hecatombe olharam uns para os outros, ainda incrédulos, mas agora da vitória alcançada tão perto do fim e da maneira mais improvável possível.
E a maior parte chorava ao pensar no sacrifício supremo de Barão Enguia, o Bem-Amado.

Foi, pois, com assombro que olharam para o fantasma de Enguia levitando no meio deles, envolto numa aura azul-brilhante, irradiando puro macho power.

-"Lembrem-se... De quem são..."

-"Usem a força..."

-"I am your father..."

(alunos, em coro) - NNÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO!!!!

No meio desta palhaçada toda ninguém se lembrou de olhar para cima e ver que a massa encefálica (ver Parte IV, crianças...) sugada pela máquina de Cherneboff fervilhava efervescente de ideais rebeldes e sexualidade recalcada.
O que resultou numa enorme explosão de raios gama da qual ninguém sobrou pra contar a história.

Nem os anjinhos.

E acabou-se.

Etiquetas:

Terça-feira, Abril 27, 2004

Tonan, o Barbariano

Capítulo 1 - Penetrando na História (ui!)

«Daqui falarei dos Povos do Norte, da Grande Ruína, dos Conflitos Arcturianos e das facções em contenda: os Tartaglio, os Pharpal e os Gugures.

«Destes últimos salientaram-se, pela sua bravura em combate e sabedoria no falar, o clã Gu'Man. Estes guerreiros de olhos profundos e brilhantes e natureza indómita eram guardiões de uma tradição milenar, pois a História dos Gu'Man tem a idade dos Gugures, e os seus primórdios remontam ao período Arboril, em que grande parte das regiões acima do mar da Obul setentrional se encontravam repletas de grandes extensões de floresta.

(...)

«Mas o tempo passou, e ao Período Arboril sucedeu o Período Mecano-Religioso. E foi durante este que as civilizações Tartaglio e Pharpal conheceram o seu apogeu. Conheceram-no graças ao progresso da instrumentalização e do conhecimento técnico, mas também à custa dos recursos naturais de Takar, o maior continente de Obul. Foi assim que grande parte da sua zona florestal foi derrubada e abatida como matéria-prima para os altos fornos das civilizações crescentes.
«Enquanto estas civilizações sedentas de poder se impunham de forma crescente no mundo antigo, os Gugures mantinham-se na penumbra, pois eles davam pouco valor às coisas complicadas. Amavam, sim, as maravilhas da natureza que os rodeava, reverenciando-a e dela extraindo lições. E os Gu'Man não eram excepção. Dos Gugures, eram os que mais se distinguiam na artes do canto e da escrita, sobretudo quando exaltavam o calor do combate e a glória da conquista. Sim, porque apesar do valor dado às relações dentro do respectivo clã, o quotidiano dos Gugures era pontuado por numerosas disputas inter-tribais. Na sua maioria poderiam ser consideradas frívolas; os próprios chamar-lhes-iam "questões de honra".

«No entanto, semelhantes conflitos eram fogo de vista quando comparados com o azedume e a arrogância crescentes entre os Tartaglio e os Pharpal. Sim, frivolidade seria pouco adequada para descrever as relações entre estes Povos: entre ambos fluia puro ódio. "Relações diplomáticas" eram assunto só abordado em anedotas ou, mais tacticamente, em ciladas.

«"Massacre" tornou-se uma palavra demasiado comum para ambos os Povos; era fonte de gáudio quando acompanhava uma conquista recente, e inflamava o desejo de vingança quando era associada à derrota infligida.

«No meio deste turbilhão sócio-cultural adivinhava-se um negro destino para...» >Aaatchum!!<

Tonan pouco ligava aos gatafunhos do velho alfarrábio, enquanto rasgava outra folha para limpar o muco esverdeado que escorria do seu nariz peludo. O bafiento volume fora retirado das mãos enrugadas de um sábio moribundo, suficientemente infeliz para se cruzar com um dos salteadores mais fedorentos da Floresta Negra - também chamada de Pintelheira Negra devido ao formato encaracolado e peculiar da sua vegetação.
O guerreiro exaltava, isso sim, a textura e suavidade do papel - "Polpa real!", bufariam os eruditos. De facto, muitos bibliotecários se enforcariam se tomassem conhecimento do uso que Tonan dava às páginas do tomo sagrado, um exemplar raríssimo dos "Anais do Tempo".
Numa coisa Tonan e os sábios estariam de acordo: tanto para um como para os outros, o título era mais que apropriado...

E que suavidade...

(fim da 1ª Parte)

Etiquetas:

Terça-feira, Março 16, 2004

Hecatombe - Parte IV - O Prepúcio do Fim

À entrada do Magnum Auditorium perfilava-se uma silhueta misteriosa, se bem que pouco imponente.

"Olhem, é ele!"
"Ali! Ali!"
"Oh, não!"
"Oh, sim!"
"Não!"
"Sim!"
"Oh!"
"Ah!"
Etc...

Cherneboff fumegava, um jorro negro brotava do buraco na sua gargantinha... Estava-se mesmo a ver que ia precisar de Tantum...

Entretanto, os alunos iam ressuscitando, lentamente; as almas inquietas no anseio de assistir ao combate do século (do Milénio!)...

" - A vossa atenção, séénhores e sééénhoraaas!"

"No canto laranja, meio azamboado mas ainda capaz de matar... Sua baixeza não tem igual... O seu hálito é FATAL!..."

"CHÉÉÉÉRRNEEBÓÓÓÓFF!!!"

A plateia Zombie apupava e de vez em quando saltava um pulmão, tal era o estado de podridão cadavérica...
A mesa dos corruptos aplaudia e tinha orgasmos de bajulação.

"No canto azul, do alto do seu metro e sessenta cinco de altura, com 395 quilos de potência cavalar, nada a perder e tudo a ganhar..."

Todo o Auditorium emudecera para ouvir o nome do misterioso desafiante...

"...BARÃO ENGUIA!"

O Barão Enguia! Assim era chamado aquele lendário ex-professor do Departamentóide, famoso pela sua indumentária metal (t-shirts MAIDEN) e cabelo oleoso, que abandonara a docência em litígio com o Directorado. Parece que não andavam muito satisfeitos com a natureza dos seus trabalhos de investigação, a altas horas de madrugada no gabinete...

De qualquer das maneiras, Barão Enguia estava de volta.
E fa-los-ia pagar caro a ignomínia de corromper a Instituição que, no fundo, ainda amava...

(talvez continue... não sei... bah...)

Etiquetas:

Segunda-feira, Fevereiro 02, 2004

Hecatombe - Parte III

Uma nova vaga de assalto estremeceu a Resistência até aos alicerces, e muitos foram os que cairam na face do novo Terror.
Os Informáticos foram subjugados por bonecas insufláveis e Internet de banda larga.
Os Físicos sucumbiram com o corte da luz e com o facto de já ninguém lhes ligar nenhuma.
Os papagaios dos Engenheiros cairam devido ao fio eléctrico ser demasiado pesado para o papel de que eram feitos.
Os Químicos, que, ao ficarem sem reagentes, não sabiam fazer mais nada, renderam-se em troca dum punhado de regularizadores de ebulição e batas lavadas.

No fim, os sobreviventes foram conduzidos ao Magnum Auditorium, onde foram expostos à cruel tortura de assistir ao discurso do novo Chefe do Directorado:

" - Bem-vindos ao novo amanhecer! Como futuros contribuintes têm o direito de assistir ao dealbar de uma nova era..."
" - Uma era de progresso, de desenvolvimento, de auto-estradas, de tachos... à vossa custa!!"

Nesse instante, uma miríade de tentáculos enferrujados desceu do tecto e, com precisão metálica, se cravaram cada um nos crânios dos infelizes prisioneiros.

Os gritos de terror e agonia misturavam-se com os repugnantes ruídos de sucção, enquanto toneladas de massa encefálica eram sugadas num compasso sincopado com as gargalhadas do novo Direktor.
Foi então que este deixou cair a máscara, e se viu, entre sangue e gemidos, a hedionda carantonha de peixe do próprio Chernebof.
Este vinha secundado pela Cruel Dama Láctea, a infame Quebra-Ossos!

"- A vossa tenra mioleira servirá de substrato para a criação dos meus novos servos..." - vaticinava, expectorante, um pustulento Cherneboff.

"- Julgava que fossem suficientemente deseducados e incultos para discutirem as minhas políticas... Julgava que os Centros Comerciais lhes iriam aplacar a veia contestatária... Qual quê! Só estão bem quando se estão a queixar... Queixem-se agora, penduricalhos!" - declamava o ditador. Mas naquela pilha de cadáveres exangues já ninguém o ouvia.

Perante uma vitória tão completa, Chernoboff não pode evitar uma gargalhada de triunfo:

"BUAHAHAHAHAHAHAHAHAARRGHUKLUKLUKLUKLUK!!!!"

O seu riso cavernoso dera lugar a um gorgolejo incongruente quando um micro-míssil TAKTIKOV(tm) o atingiu na garganta.

(continua...)

Etiquetas:

Domingo, Janeiro 25, 2004

Hecatombe - Parte II

A situação deteriorava-se. Apesar da resistência inicial no 7º Templo da Ilógica, os alunos capitularam, exaustos de ouvir as ladainhas mortalmente entediantes dos professores do Departamento. Estes não foram importunados, visto que as tropas invasoras selaram prontamente os seus gabinetes em sarcófagos de betão, para conter a ameaça.
Os restantes Departamentos resistiam heroicamente.
Os Informáticos combateram em barricadas de hardware ultrapassado. Muitos especializaram-se no arremesso de CD's mortíferos, ao melhor estilo de Xena(tm).
Os Físicos estavam melhor preparados, pois dispunham de aparatos LASER de alta potência e equações indecifráveis, altamente incapacitantes.
Os Engenheiros dispunham de planos de estruturas e fio eléctrico, com que fizeram bonitos papagaios.
Os Químicos, esses, empregaram os seus conhecimentos na síntese de venenos, explosivos e compostos aromáticos altamente enjoativos, como o Limoneno. Muitos foram os soldados das forças invasoras que sucumbiram a um ataque de vómitos antes de chegarem sequer ao 3º piso do Edifício Departamentóide de Química.
No plano global, a invasão estava a revelar-se morosa e difícil. E Cherneboff, do alto do seu trono laranja, inquietava-se com pensamentos contraditórios. "Será que fiz mal em subestimar estes mandriões? Está na hora de passar ao Plano B!"

As novas contingências foram postas em prática. O que se seguiu foi hediondo...

(continua...)

Etiquetas:

Domingo, Janeiro 11, 2004

Hecatombe - Parte I

Era Verão e tinha acabado de estalar a Grande Guerra Académica. O seu epicentro situava-se, precisamente, no Instituto Científico-Tecnológico da Outra-Banda.

Foram muitos os que lutaram contra fogo de artilharia e terríveis torpedos mortíferos, mas ninguém se livrou de os albergar no rabinho.
No fim, as baixas ascenderam aos milhares. Contaram-se 852 euro-ogivas despoletadas no primeiro impacto.

A primeira ala a cair foi a do Directorato. O líder não resistiu à explosão de um óbus e esvaiu-se em sangue, com um estilhaço alojado na região perianal. Os resistentes suspiraram de alívio. O chefe do Directorato era um traidor e todos o sabiam. Afinal, fora ele que aceitara a repugnante proposta do regime de Cherneboff. A sua morte em combate desobrigava-os de uma vingança sangrenta.
Um grupo de milicianos associativistas ainda tentou segurar o perímetro da ala D com rolos atrás de rolos de arame higiénico, mas de nada serviu contra a couraça dos implacáveis Rhino-comandos, unidades blindadas de combate politico-estratégico. Esta tropa de elite fora enviada pelos burocratas de Cherneboff, servidores fiéis da ditadura mental que este instituira com a sua matrona, a Dama Quebra-Ossos, assim chamada pela sua semelhança com esta ave necrófila, quer em aspecto quer em rapacidade.
Parte da Resistência encontrava-se barricada no edifício do Refeitódromo, visto que o ataque surpresa fora iniciado à hora de almoço. A rapidez de reacção fora vital para conservarem as vidas, mas agora que a epidemia alastrava pelas hostes do Exército de Libertação Académica, os soldados maldiziam a sorte da escolha. Os corredores fétidos das instalações há muito que se encontravam fora de manutenção, e a péssima qualidade das rações só piorava a saúde e o moral das tropas.
No 7º Templo da Ilógica a situação não era melhor, com as suas paredes envidraçadas. O fogo de metralhadora lançou uma chuva de estilhaços dilacerantes sobre os refugiados.
A maioria saía de Análise I, e encontrava-se armada com apenas os cadernos. No entanto, os poucos que traziam a sebenta faziam dela uma arma temível. Lançadas com pontaria faziam mais vítimas que uma granada de fragmentação, tal a toxicidade do seu conteúdo. Os alunos mais corajosos corriam de encontro ao inimigo declamando trechos das suas páginas, semeando caos e insanidade nas fileiras.
(continua...)

Etiquetas:

Sexta-feira, Novembro 07, 2003

Faster

O mundo deslizava por baixo dos seus pés como uma passadeira rolante artisticamente trabalhada. Mas os olhos daquele homem permaneciam abstraídos do que o rodeava. Naquele momento, além de um ou outro obstáculo no seu caminho, a sua mente não deixava de se contorcer em volta do extraordinário conjunto de circunstâncias que o trouxeram àquela situação.
O homem corria – dir-se-ia que voava – há muito tempo. Desde que aquele pesadelo começara que ele não tinha parado de correr – ou voar, ou deslizar – por aquela sucessão de fotogramas a que chamamos realidade.
Naquele momento o homem fez um esforço para se lembrar... Quando fora? Ah, sim, fora num Verão... Naquela maldita Meia Maratona...

Gabava-se de ser um corredor mediano, um "atleta part-time", um homem de ciência, que conjugava a custo a corrida com o horário de trabalho no Acelerador Cyclotron II do Departamento de Física Quântica João Magueijo, na FCT-UNL.
O projecto megalómano demorara 20 anos a ser construído – fora as décadas de concepção – mas em 2063 era já uma realidade. Com um diâmetro de 12 km, o enorme acelerador de partículas englobava no seu perímetro Almada e Caparica. Tal era a escala necessária a um empreendimento daquela natureza. O consórcio multinacional decidira construir o mega-acelerador em Portugal, prestando assim homenagem ao famoso cientista que tivera a coragem de questionar um dogma com pouco mais de cem anos. As implicações práticas da teoria supra-fotónica eram incríveis; e tentar, sequer, aflorá-las exigia infra-estruturas muito específicas. Enormes. E caras, muito caras. Tão caras que o projecto fora adiado inúmeras vezes, e inúmeras vezes salvo por injecções de capital do "mecenato" de empresas interessadas. Passada à prática, a teoria supra-fotónica revelar-se-ia muito frutuosa.
A filantropia paga-se sempre.

Ele sempre se sentira interessado pelo infinito, em todos os sentidos. O mínimo e o máximo. Do sub-atómico ao cosmológico. E foi sem surpresa que os seus pais o viram enveredar pelo curso de Física Aplicada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, no Monte da Caparica. Uma decisão reforçada pelo anúncio de que as instalações do futuro Cyclotron II seriam ali erigidas.
Trabalhar no acelerador seria o culminar de um velho sonho: o de alcançar um fotão desgarrado – qual pirilampo vagabundo numa constelação de colisões – e ultrapassá-lo!
Ao fim de dez anos de estágios e doutoramentos, os cérebros do Comité Científico do consórcio consideraram-no apto a integrar a equipa de trabalho do acelerador. Ele recebera a notícia com uma euforia desmedida, um êxtase visceral a que não sucumbira por pouco. Nessa noite a sua mulher estranhara o ímpeto apaixonado, a avidez com que ele desfrutara do contacto dos seus corpos. Cansada, acabaria por compreender que aquele projecto traria um vigor inusitado ao seu marido, que sempre desdenhara como fraco amante e companheiro distraído.



Os anos passaram e os seus filhos testemunharam o erguer das gigantescas gruas e o rugido das toupeiras mecânicas, enquanto escavavam quilómetro após quilómetro de leito rochoso, quais Leviathans da nova era. A inauguração do gigantesco complexo fora celebrada, como não podia deixar de ser, com grande pompa e circunstância, a que não faltaram sequer os grandes líderes mundiais de então. O entusiasmado e envelhecido cientista, esse, mal ligara ao remoinho multicolor de estrelas mediáticas e comunicação social. Só tinha olhos para o imenso sistema de painéis de controlo que estaria a supervisionar, entre trinta outros colegas, na semana seguinte.

Eram estas as recordações que passavam à velocidade de um relâmpago pela mente do corredor. Este já se deixara de definir como um corredor. Sentia-se como uma automotora desgovernada, um cometa extraviado da sua órbita regular para uma trajectória ruinosa. Mas mais aflitivo do que aquela correria sem rumo, mais aflitivo do que não conseguir parar, era aquela sensação. Sentia-a no estômago, aquela maldita aceleração. Desde que aquilo começara que não tinha deixado de aumentar de velocidade. Imperceptível a início, aquela força invisível puxava-o para diante com uma intensidade perversa, quase sádica. O pobre homem tinha deixado de calcular a sua velocidade quando a sua visão do mundo se começara a desvanecer, as cores e as figuras distorcidas como testemunhos de uma passagem alucinante por um mundo a que já não pertencia.

Voltou a esforçar a mente. Tinha de puxar pela cabeça. "Pensa, homem, pensa!" E a recordação voltou. A recordação daquela fatídica noite em que, pela primeira vez na História da Ciência, se registou o movimento de uma partícula a uma velocidade superior à da luz. Os instrumentos zumbiam, reflexos baços do cientista maravilhado. Freneticamente, teclou instruções de modo a calcular a velocidade exacta. Segundos depois os monitores debitaram o valor mágico: 1,37c!
Nesse instante duas coisas sucederam: uma falha nos geradores percorreu as instalações, cujas luzes cintilaram, intermitentes; o cientista, sozinho na sala de controlo, reparou na falha ao mesmo tempo que um brilho fantasmagórico se emanava da maquinaria circundante. Estranhava a falha, mas não tanto como aquela névoa tremeluzente que se difundia através das paredes. Algo o intrigava naquele comportamento...

Foi então que o terror das evidências tomou conta de si. A névoa estava a concentrar-se num só ponto daquela sala, e esse ponto era ele próprio. Esbracejou, desesperado, mas era tarde demais. Encontrava-se rodeado por uma aura gélida, cintilante, que nada tinha de reconfortante ou maravilhoso.
Envolvia-o o próprio hálito da Morte.

A única coisa de que se lembrava no dia seguinte era de que o acelerador tinha sofrido uma avaria, devido a uma falha momentânea nos geradores de fabrico soviético. Pensou com desdém no enorme Mausoléu de Chernobyl, e deu graças por ninguém se ter ferido. Ninguém, além dele próprio.
Porque ele sentia-o. Não o sabia descrever, mas não se sentia o mesmo desde aquela noite. Sentia-se fora de tempo, como... como um relógio ligeiramente adiantado? O mundo continuava igual mas... monótono. Diria mesmo lento.
Foi então que decidiu começar a correr. A mulher advertiu-o para o perigo de começar a fazer exercício físico numa idade daquelas, ainda mais sem supervisão. Mas ele não sentia qualquer necessidade dum treinador. Julgava até que tinha nascido para aquilo. Começou por correr à volta do bairro. Depois, de casa para o trabalho. Os treinos sucediam-se a um ritmo e intensidade crescentes. Continuava a trabalhar no acelerador, revendo registos atrás de registos do espantoso percurso daquela partícula desgarrada. Os registos em si eram igualmente espantosos. Segundo estes, a partícula percorrera os 38 km do perímetro do Cyclotron 119.923,25 vezes, num total de 11 segundos antes de desaparecer completamente do alcance dos detectores. Sem mais nem menos.
Era um facto que o intrigava na altura, a par da estranheza da sua própria condição – com a diferença de que esta não podia ser medida. Uma partícula não se volatilizava assim, sem deixar rasto. A potência dos aparelhos permitia-lhes um grau de rastreio que não deveria deixar escapar a mínima perturbação electromagnética.

Fora para desanuviar a mente dos seus problemas que o físico se resolvera inscrever na 60ª Meia Maratona de Lisboa. Seria uma corrida leve, comparada com o treino a que se submetera nas semanas anteriores. Deveria ultrapassar os profissionais da modalidade com facilidade. Sorria para si mesmo enquanto pensava nas manchetes do dia seguinte: "Físico português vence Meia Maratona com 17 minutos de avanço do tricampeão queniano!". Era uma extravagância que podia conceder a si mesmo.

"Idiota! Deitaste tudo a perder..." pensou para si mesmo enquanto acelerava cada vez mais. Estava agora rodeado por um borrão indistinto, aquilo que anteriormente fora o seu mundo, o seu berço.
"Se não me tivesse armado em esperto..."

Recordou o momento em que se preparava para ultrapassar Essaniouwy, o expoente máximo do fundismo internacional.
Recordou o instante em que o corredor negro o olhou nos olhos, um olhar incrédulo. Um olhar de medo.
Recordou a voz embargada dos repórteres nas motorizadas, quando os ultrapassou.
Recordou o ruído ocasional dos condutores que se despistavam, incrédulos, quando o viam passar como uma flecha na auto-estrada.
Recordou o estampido ensurdecedor de Mach1.
E agora atravessava o mundo a uma velocidade imperceptível, de tão rápida, maldizendo a sua sorte.
Não saberia se alguma vez iria parar, ou se morreria antes disso. Estava completamente só e desamparado numa realidade que não cria sua.

Foi então que as trevas vieram.

E com elas o horror. O horror de ver um corpo que se desfazia para dar lugar a uma névoa enregelante e familiar.
O horror de saber que agora era mais um espectro condenado a vaguear para sempre no vazio.

Etiquetas: