Histórias Tristes dum Homem Feliz
Diário de Vasco Carvalho
Prólogo
Passam poucos minutos das quatro da manhã, e encontro-me em Castellon de La Plana, pequena cidade na costa mediterrânica de Espanha, a poucos kilómetros de Valência. Está um frio de rachar nesta manhã de Outubro, o vento sopra gelado de Norte e corta-nos a alma fazendo-nos sentir vivos! Sempre gostei deste tipo de frio… Talvez porque me faça lembrar a sensação reconfortante da lareira e do cobertor que me aqueciam em dias assim quando era criança. O autocarro das quatro está atrasado, como sempre. No meio da pequena multidão de romenos e árabes que se movem nervosamente à minha volta, um rosto sobressaí… Um homem na casa dos quarenta anos com uma guitarra ás costas. Fixo-me neste homem, com aquele aperto que nos vem ao peito quando encontramos uma cara fora de contexto… Um rosto tão familiar, e a angustia de não sermos capazes de nos lembrar de onde o reconhecemos, apesar de sentirmos ser uma boa recordação… Começamos lentamente a tentar recordar todas as coisas boas que nos aconteceram nos últimos tempos e mais a angustia aumenta quando nos vemos incapazes de o fazer com exactidão… É quando começa a confusão temporal no nosso cérebro e já não somos capazes de organizar convenientemente a sucessão de momentos de que nos vamos lembrando! Até que alguma pequena faísca acidental nos faz lembrar exactamente o momento em que conhecemos aquele rosto e, a partir de aí tudo faz sentido, recuperamos as nossas memórias e o respectivo sentido cronológico. Para mim foi quando, este homem se cansou de esperar sentado pelo autocarro que já estava atrasado pelo menos meia hora e tirou a guitarra… Começou por tocar pequenas melodias de breves segundos, talvez aquecendo os dedos deduzi. Senti um ambiente daquele jazz tão brasileiro. Hummm… O vento continua a soprar gelado, mas a Bossa Nova aquecia o ambiente. Os romenos e árabes deixaram de me parecer tão frenéticos e tudo retomou a devida calma da espera, menos o meu cérebro, que por estas alturas continuava a sua batalha secreta por recordar este homem… Até que dou por mim a entoar, mentalmente, a letra d’A Garota de Ipanema, e pergunto-me porquê… De facto, aquela guitarra velha assim mo ditava e lembrei-me! Aquela música e a linda Adriana! Foi em Lisboa! Sim, conheci-o em Lisboa: verão de 2001! Chocamos, literalmente, no Castelo de S. Jorge! Ele estava a tocar esta mesma música e uma jovem de cabelos castanho-claros, pequenas ondas de paixão que lhe cobriam os ombros, com um vestido de alças, todo ele sinónimo de desejo, que cobria aquela escultura divina até dois dedos acima do joelho … Ela cantava a melodia e pequenos movimentos da sua cintura completavam o quadro… Claro está que absorto nesta visão idílica fui chocar com o guitarrista! Para além de ter estragado o momento verifiquei que alguns estrangeiros voltaram a por as moedas no mesmo bolso de onde as tinham acabado de tirar. Acabei por os convidar para beber um copo e, talvez, comer qualquer coisa. Mais para ver de perto esta reencarnação de Helena de Tróia, que por compensar as suas perdas monetárias, acho eu! A verdade é que aceitaram prontamente… O sol estava a pôr-se na foz do Tejo e Lisboa tingida pelos seus tons doirados completava a beleza da jovem. Ficamos ali perto, num café para turistas, não quis parecer inoportuno ou mal-educado em tentar escolher um sítio mais cómodo de preço, afinal de contas, tinha-lhes estragado o negócio e ainda estava adormecido por ter diante de mim tamanha formosura. Foi assim que nos conhecemos, ele na casa dos trinta, homem rude de roupas velhas, mas impecavelmente limpas, as mãos calejadas, a barba por fazer, olhos de um cinzento apagado que gritavam saudade, a guitarra com visíveis danos físicos e, a julgar pelo dono, psicológicos também. Nome: Vasco Carvalho; Idade: 33; Profissão: Fazedor de Nada, como ele se auto-proclamava; Proveniência: filho de portugueses, mais propriamente de Angra do Heroísmo, radicados nos Estados Unidos, São Francisco, para ser mais exacto. Ela, como já vos disse, capaz de mudar o significado de Beleza patente nos Dicionários… Nome: Adriana dos Anjos (ahhh! Como fazia jus ao nome…); Idade: 25; Profissão: Modelo, cantora, bailarina, ou, como acabou por simplificar depois de algumas garrafas de vinho, todo o tipo de trabalhos que dêem dinheiro só pelo facto de se ser bonita e em que não se tenha que utilizar directamente o corpo; Proveniência: filha de Brasileiros de uma cidade que não me lembro do nome, também eles a trabalhar nos States, São Francisco. Fora aí que se conheceram, no Bar de Jazz onde seu pai era o responsável por seleccionar os novos talentos que todos os dias apareciam a tentar a sua sorte! Vasco foi um deles, e apesar das escassas oportunidades como interprete, tornou-se um frequentador habitual, a principio apenas pelo prazer de ver Adriana e mais tarde pelos ensinamentos que ia recolhendo, principalmente do pai de Adriana, que ao ver que a sua filha se tinha apaixonado por um artista falhado, decidiu fazer dele alguma coisa de jeito, e a verdade é que conseguiu. Um ano depois de ter entrado no Bar pela primeira vez encheu a pequena sala de concertos. Decidiu que era altura de partir e conhecer o mundo! Decidira vir para Portugal, conhecer o país de que tanto ouvira os seus pais falar na sua infância! Adriana, como transparecia no seu olhar segui-lo-ia até ao fim-do-mundo, pelo que veio com ele utilizando a desculpa que Portugal fazia, também, parte das suas raízes… Já a Lua ia alta e ficamos por ali… Uma promessa vã de nos voltarmos a ver, se bem que eu não me importaria nada de voltar a encontrar Adriana… E nada mais… Até hoje! Em Castellon de La Plana, pequena cidade na costa mediterrânica de Espanha, a poucos kilómetros de Valência e a espera por um autocarro para Barcelona que está atrasado, como sempre, uma guitarra e alguns romenos e árabes nervosos! Não pude deixar de o cumprimentar! Primeiro verifiquei o seu olhar surpreso por alguém se lhe dirigir em português e depois, talvez a mesma angústia pela qual eu tinha passado momentos antes, a tentar lembrar de onde seria familiar o meu rosto. Resisti à tentação de o pressionar perguntando se já não se lembrava de mim, da mesma forma que não lhe retirei o prazer de se lembrar por si mesmo e exclamar: “Ahhhh! O desastrado do S. Jorge!” – Por breves momentos reavaliei as minhas duas ultimas decisões!
Fiquei desiludo ao saber que Adriana voltara para o conforto do Lar e questionei-me qual o interesse de continuar a falar com ele, um pequeno olhar em redor, para constatar que apenas romenos e árabes esperavam o autocarro forneceu-me razões suficientes… Nós éramos, ali e naquele momento, uma minoria étnica, pelo que tínhamos a obrigação de permanecer unidos! Chegou o autocarro, finalmente! Falamos de nadas, pequenas trivialidades e talvez outras coisas que não me lembro até Tarragona. Eu ficava por ali, tinha uns amigos para visitar neste, outrora, importante porto do Império Romano. Ele seguia viagem até Barcelona. Comentei em jeito de promessa vã, mais uma vez, que eu também lá estaria dentro de um par de dias… Na verdade, não julguei que o encontraria jamais, uma coincidência é muito numa vida tão curta! Mas, de facto, passadas duas semanas, estava eu a cumprir a minha visita ritual de ultimo dia em Barcelona ao Parc Güell, quando me fixei numa rapariga, esta de aparência normal, que fazia bolas de sabão gigantes, lembro-me de pensar que era uma excelente combinação com a arquitectura de Gaudi, quando ouvi uma guitarra chorar ali bem perto, claro que não poderia deixar de ser Vasco Carvalho, ou não fosse isto um prólogo decente de uma história ficcionada baseada em encontros improváveis entres duas almas perdidas. Falamos muito pouco, acompanhados por uma Voll-Damm, eu voltei a Lisboa e ele ficou por Barcelona…
Nada disto seria digno de registo sem um derradeiro encontro que marcaria, definitivamente, o início da nossa amizade!
Ocorreu no sítio mais improvável que possam imaginar a seguir aos Pólos, Himalaias e outros locais inatingíveis para meros mortais como eu e o Vasco, em Coimbra. Eu estava ali, mais uma vez, de visita a uns amigos, que tinham vindo fazer o seu Pós-Doutoramento; ele, claramente, pelo Fado. Poder-vos-ia contar os detalhes deste nosso encontro regado com um bom vinho do Dão e temperado com muito Fado. Mas, seguramente, não o faria tão bem quanto ele neste Diário que vos transcrevo.
APC
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