Quinta-feira, Novembro 05, 2009

V – Os Transportes

Passam autocarros
Passam táxis
Passam pessoas
Espera-se e espera-se
Aí vem o próximo
Passam pessoas
Passam paisagens
Passam transportes
De quem asseia por casa

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Terça-feira, Outubro 27, 2009

IV - A Noite

Luzes de mil cores
E o tempo que congela
Vadios de rumo certo
Olhares ansiosos e vorazes
Apetites loucos à solta
Um sentimento de desconhecido
A cada esquina conhecida
Nos estranhos companhia
Que nos leva a estranhar
E abandonar a razão que temos
Grupos que crescem mesmo que apenas por horas
Horas que passam sem se verem
Véu negro que clareia
Passagem para o amanhã
Renascer da alegria

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Quinta-feira, Outubro 22, 2009

III - Fim de Tarde

Sentir a brisa do fim de tarde
Os raios mortiços
De um sol que está de partida
O rebuliço das gentes
Que se vai com o calor
E o calor das gentes nos bares,
Que aumenta com a escuridão.

O ar sorridente
O ar cansado
O ar pesado
O ar carente
O ar de toda essa gente
O ar que tenho em mim.

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Terça-feira, Outubro 13, 2009

II - Os Cafés

Há gente estranha
Que ocasionalmente olha para mim.
Estranhos não por serem esquisitos
Estranhos por serem diferentes.
Os muros que erguem são altos
E maciços, mas ali, na aragem do final de tarde
Sentimos os ventos da liberdade
E vemos o sol
Por entre as falhas dos tijolos.

É ali,
Com as suas bebidas e comidas
Do que para mim é o final do dia
Para eles o começo da noite
Que os vemos como são
Em amena conversa
De olhar agressivo.

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Segunda-feira, Setembro 14, 2009

I - Os Passeios

Percorri como um vulto as ruas da cidade
Calcorreando os negros caminhos de pedra
E abrigando-me do calor do sol
Em sombras de centenários prédios.
Cada passo era um passo já dado
Por outros, noutros tempos,
Mas eram mesmo assim passos originais…

Percorri com um vulto as ruas de que falo.
Sentia-o sempre ali ao meu lado
Calado, a tentar não me dar importância,
Mas a conduzir-me
Por ruas e vielas de outrora
Por entre gentes e culturas de agora.

O sol alto aquece-me os passos,
Só as palavras são frias,
Porque frio é o ar que vem do mar,
Que me desperta os sentidos
Que me faz olhar em redor
Que me faz esquecer o calor

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Sábado, Agosto 01, 2009

A Torre de Marfim

Contemplei, admirado, as suas paredes esbranquiçadas. Ao longe pareciam ser de um branco alvo e imaculado, mas à medida que o metro me levava mais perto, percebi que aqui e ali estava manchada com traços de cinza e azul. Já mais perto, mesmo junto à porta, reparei que era de um cinza com traços de preto, sinais evidentes da sua idade.

Chegava com sonhos e ilusões de grandeza. Era ali que se reuniam os maiores génios da sua actualidade. No cimo daquele monte, o ambiente era propício ao desenvolvimento intelectual. À medida que me perdia, apercebia-me da vedação, que deixava de fora daquele ambiente privilegiado a ralé e a escumalha intelectual que passeiam pelas nossas ruas. Uma vedação, feita de rede aqui, muros de cimento ali e com portões em tons de verde, com vinhas nas vedações de arame circundantes, colocados em todo o perímetro.

Ali estava uma ilha no mar de ignorância. Era o local, friso-o novamente, onde as mais brilhantes mentes do nosso tempo se reuniam e eu queria absorver todo o seu saber. Subi os três degraus para a base da torre e entrei, passando o balcão de segurança onde ninguém estava e contemplando o mar de mesas onde uma multidão trabalhava.

O grande átrio de mesas era cortado mesmo no centro por uma grande escadaria. No momento em que pisei o primeiro degrau uma voz de trovão ecoou por todo o átrio. “E há que ter em linha de conta os créditos! Não podemos esquecer os créditos. Os créditos são fundamentais!” procurei em vão a fonte de tal afirmação e descobri ser um indivíduo de baixa estatura, com uma barriga de cerveja bem proeminente, de cabelos grisalhos e de aspecto oleoso apanhados num rabo-de-cavalo que lhe chegava a meio das costas. Rodeavam-no algumas das mulheres mais horrendas que já vi na minha vida, apensa comparáveis a descrições de criaturas das trevas em livros de fantasia. Desciam as escadas e ao passarem por mim agiram como se eu não existisse, empurrando-me contra o corrimão azul, que abanava como uma seara ao vento, à medida que desciam as escadas. “O problema é que os alunos não estão para se dar ao trabalho, é melhor não exigirmos muito. Há que falar com aqueles que são demasiado exigentes, porque se a proposta de avaliar em função do mérito avançar, temos de estabelecer quotas de aprovação!” continuava a dissertar indivíduo a quem a multidão de bajuladoras chamava de Prof. Posta.

Confesso que a impressão que aquele grupo causou em mim foi de estranheza e estupefacção. Estava estupefacto com o que ouvia, e causava-me estranheza a forma messiânica como o referido Prof. Posta se passeava. Por momentos tive a sensação estranha que ele se sentia o dono do edifício, a forma como balanceava não os braços mas o ombros ao andar, os braços arqueados como um culturista, e que aquela multidão que o seguia mais não era do que a sua merecida multidão de servidoras.

Num dos cantos do edifício havia uma escada em espiral que facultava o acesso a todos os pisos. Decidi-me a subi-la. Havia-me candidatado a um bolsa de investigação com um tal de Prof. Saudita, que tinha o seu laboratório no sexto piso deste edifício. Estava bastante entusiasmado com a proposta e o convite pronto que havia recebido para vir à entrevista deixava-me com grandes esperanças.

Ao passar pelo segundo piso uma outra voz fez-me parar de subir escadas. No corredor imediatamente em frente uma senhora, de aspecto um tanto ou quanto tresloucado, falava com um grupo de alunos que tentava, até eu me apercebia à distância, desesperadamente sair dali. “Então meus filhinhos,” dizia ela com uma voz meio rouca “não querem uma bolsa? São cem euros por seis meses de trabalho intenso no meu laboratório a tentar descobrir uma maneira de furar uma patente para um anti-viral famoso” continuava e ria-se e tentava outra abordagem “E já viram o triângulo das minhas bermudas?” A imagem tinha tanto de horripilante que só mencioná-la ainda me dá calafrios. Face ao tenebroso daquela personagem, que vim a saber posteriormente dava pelo nome de Prof.ª Quinha, decidi subir as escadas.

“Olhe lá, seu paneleirote, importa-se de tirar a minha coluna do seu rabo?” gritava uma estridente voz ao fundo do corredor, mas eu ouvia-a como se estivesse ali logo ao meu lado. “Veja lá como fala comigo! Olhe que eu acuso-a de discriminação sexual!” dizia um fulano de voz pouco grave mas rouca, de rabo empinado, calças verde alface, com laivos de fluorescente, uma camisa de um rosa intenso e que ao correr corredor acima balouçava mais o rabo que uma modelo na semana da moda de Milão. O Prof. Rabe era famoso por não necessitar de orçamentos para equipar o seu laboratório e parecia estar a meio de uma ida às compras.

Continuei a subir e no quarto piso sou surpreendido por um fulano com uma larga calva, com uma coroa de cabelos brancos e encaracolados, com uns óculos fininhos e de olhos imensamente abertos, para lá do que pensei possível a um ser que não seja arraçado de sapo. O Prof. Ascensio Ilevattori recolhia assinaturas para aquilo que considerava ser um atentado à excelência académica: o mau funcionamento dos elevadores no edifício. Falava e dissertava como um seu amigo inglês havia, numa recente visita, ficado muito cansado ao subir os três lanços de escadas até ao seu laboratório.

No piso seguinte o cansaço começou a apoderar-se de mim, certamente por fazer tantas paragens, pelo que decidi não parar e seguir directamente para o sexto piso. Tive no entanto tempo para ver um poster a anunciar a abertura do novo curso em Bio-Engenharia Molecular em Nanoquímica Verde Sustentável. O sexto piso parecia-me menos estranho que os anteriores pois não se via gente nos corredores, apenas alguns posters referentes a trabalhos famosos do departamento, como por exemplo “A Handersenase e a Fointanase: um conto de enzimas para toda a família” e “Estudo do grupo heme em anfíbios: o caso do cachalote (Cetacius patranhus)”, estudos que de resto são marcos na ciência em Portugal.

Ao fundo do corredor ficava o gabinete do Prof. Saudita. A entrevista correu muito bem. O Prof. propôs-me inclusivamente pensar em fazer o doutoramento com ele. Aparentemente o facto de ter o currículo científico de uma amêijoa e ter acabado o curso com uma média de 12 não interferiam porque como ele disse “isto fala-se com o júri e a coisa passa sempre”.

Quando passei novamente o portão, havia uma questão que ainda levava comigo e que me fez repensar a função daqueles muros. Ao falarmos de todo o projecto perguntei, um tanto ou quanto inocentemente, qual a aplicação prática de tudo o que faríamos. O “não se preocupe que isso logo se vê” que recebi como resposta deixou-me um pouco abananado e perguntei de seguida se havia alguma empresa a colaborar com o departamento. A resposta de “uma ou duas mas isso é só em coisas muito específicas, aqui não temos disso” é que me afastou. Percebi então para que servem muros numa instituição de excelência e a resposta que encontro é que não é para deixar a mediocridade do lado de fora…

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Domingo, Julho 05, 2009

CoBrA

B-A-Bá
As escamas como tijolos
Vermelhas de barro
Com vestígios do sal do Báltico
Com a sujidade do pântano
E os tons inspiradores do Norte de África

Dentes de criatividade aguçados
Preparados para cuspir veneno
Apertar a vítima nas suas ruas
Para sempre presa armadilhada
Agarrada a esse deambular

Janelas parcamente iluminadas
Uma urbe que vive para sempre à noite
Capital como pacata vila
O correio que se perde na viagem

Uma criança que agora começou a ver
Com rabiscos e palavras sem nexo
Mergulhada em águas de inocência

Quero voltar e perder-me nas vossas curvas
Ver-vos novamente com novos olhos

Oh! Esplendor da infância!

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Sexta-feira, Junho 26, 2009

O Caminho para Casa

O rebuliço que vai na minha cabeça
Contrasta com a calma em redor
Sentado, jornal dobrado na mesa
Copo de cerveja, apático, na mão
Os olhos a sondar o ambiente
E a mente, fora do corpo a vaguear.

Há um espaço oco cá dentro.
Havia antes de deixar o meu corpo
E tão cedo não se enche.
Por vezes, o ar fresco da tarde,
Traz um sorriso
Mas o dia-a-dia apressado
Traz as rugas
E leva-me para longe do Paraíso.

Não digo que seja infeliz,
Não digo que seja feliz,
Podia dizer que nada digo
Mas quando passo os dias
Há muito que me digo e não digo.

Não sou desprovido de conteúdo
Mas sinto-me vazio
Falta-me realização, sentir que escolho
O caminho que tomo para casa.

Segue em frente, vira à direita,
Segunda à esquerda, logo à frente.
Segue em frente, vira à direita,
Segunda à esquerda, logo à frente.
Segue em frente, vira à direita,
Segunda à esquerda, logo à frente.

E no dia em que entro pela porta das traseiras,
Por andei, estavam preocupados
Sem espaço para respirar, para me atrasar,
Para mudar, para ser, para alterar,
Para começar a andar e me perder!

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Domingo, Junho 21, 2009

Senti-te à espera

Senti-te rasgares-me a alma,
Quando de mim só pedias espaço.
Senti-te a fugires,
Como se fosse um vil criminoso.
Senti-te a fugir de ti,
Porque as forças para me enfrentares te fugiam.

Esperei longamente o põr-do-sol,
Para nas sombras me esconder
E por entre gemidos
Poder chorar a dor.

Esperei que o sol não se risse mais;
Pelo suave manto da noite,
Como veludo negro e suave onde
Me preparo para o pior que há-de vir.

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Quarta-feira, Maio 27, 2009

Cave

Na cave desse prédio mora um horroroso animal
Desprovido de regras, de costumes e qualquer tipo de moral.
Vive de alimentar essa sua fome natural
De tudo um pouco o que os de cima vêem como Mal...

Não vive feliz esse animal.
Vive enraivecido e embrutecido
Nú de sentimentos, incapaz de sentir
Preso e agaiolado, sem vontade de fugir!
Como chegou tão fundo?
Foi um dia em que um homem belo e elegante,
Que passeava pelas ruas, admirava as cores
Alegrava-se com os ruídos, cumprimentava as pessoas...

As pessoas, a sua queda!
Agradava a todas sem exepção
Até aquelas que nada lhe eram.
Procurava viver, numa semana, tudo o que a vida lhe oferecia
Não durou pessoa mais de um dia!
Vencido pelos prazeres da carne à segunda-feira,
Entregou-se ali logo a uma rameira de fina-flor
Que o mergulhou com cigarros num torpor inebriante
Com o qual contagia quem na sua cave entra!

Na cave do meu prédio mora um animal.
Ser estranho e perverso, que me torna aos outros adverso,
Que me arrasta para baixo, me devora,
Sentimentos néscios traz cá para fora...
Viu no outro dia, pela janela, uma criança.
Espantou-se com o seu ar de abelha mansa,
Gatinhou até às grades da janela e apreciou
O seu andar; com atenção olhou a sua figura
E uma pata lançou pela ranhura das grades
Querendo nela enfiar as suas garras aguçadas.

Sabe bem como fala a criatura
Que nessa cave se deita na pedra dura
Sorvendo ervas que vieram da lonjura do mar
E que suaves perfumes deitam no ar.
À medida que se sopram, puf... puf...
Adormecendo-me os sentidos, ficando mais e mais perdido
Quanto mais me acho e encontro.
Puf... Puf...
Lembro a criança... Cintura fininha e peitos já salientes
Nos meus membros sinto já formigueiros
E meus pensamentos esvoaçam para dias mais quentes
De areias tórridas, onde leis do Homens
Não amarram animais em caves frias.

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Liberdade

Convidei para jantar certo dia a liberdade.
É moça de idade avançada...
Veste colarinhos e mangas compridas e para o repasto
impôs, pasme-se então, que a certos regras me prestasse!
Não queria vir de dia, noite cerrada tinha de ser,
Porque o véu escuro da lua nova
Esconde de seus olhos as vergonhas
Que em seu nome os Homens se fazem sofrer.

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Sexta-feira, Maio 22, 2009

Tempestade

Já a vejo lá ao fundo
Com o seu ar pesado carregado
Em tons negros contra os raios brilhantes
Avança empurrada na minha direcção.

Já o oiço,
Sopro invisível
Arauto da violência
Ventos gélidos e sibilantes
Nas copas distantes silvando

Eis que chega agora
Descarrega em mim a sua força
Aceito-a!
Recebo de face erguida o golpe
Das grossas gotas de água que me banham a face
Sou empurrado pelos violentos ventos que me movem
E em tudo vejo e sinto e oiço
O doce travo da passagem do Cabo...

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Quarta-feira, Abril 29, 2009

Leva-me contigo para essa praia distante
Onde ao luar soltaste os cabelos e ofegante
Descobriste a religião
Chamando por Deus de costas no chão
A brisa marítima como orvalho da manhã
Lava-me já o rosto que acaricias com o cachecol de lã
E pudera eu ser o mar que te beija os pés
Não estaria tão cheio de fé
Que aqui viemos para tu te mostrares
E não como queria para me amares

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Sexta-feira, Março 27, 2009

De manhã saí à rua

O Sol já vai alto e agora aquece. A leve brisa do rio deu lugar a uma aragem quente e começo-me a sentir desconfortável. Começa também a surgir a curiosidade sobre aquele corpo que repousa na cama. Vou até à bolsa que ficou no hall de entrada para procurar a identificação. No caminho imensas fotos dela e de um casal claramente mais velho, ora o casal, ora ela, ora ainda os três juntos... Na carteira a confirmação do crime cometido! Foi bom, é certo, mas agora está na hora de ir.

Visto-me à pressa e saio porta fora. Entro no café que há na esquina e sento-me na esplanada. Peço uma torrada e um sumo de laranja e pego no jornal da mesa do lado. As notícias não me animam, mas o reflexo de folhear o jornal vem de há muitos anos, ajuda a pensar... Por entre uma página e outra vou olhando a janela do quarto, que vejo estar agora aberta. Por um instante penso em voltar e falar com ela, mas depois passa-me e mergulho novamente no jornal. Com a noção do tempo desaparecida vejo que a torrada e o sumo já estão na mesa. Como lentamente para saborear, não a comida mas o ar fresco das manhãs à beira-rio. Absorvo não o alimento, mas aquele estado bucólico de fim-de-semana, em que os dias são maiores e as manhãs mais lentas, tão iguais e tão diferentes de todos os outros dias.

Levanto por acaso a cabeça e nesse instante vejo-a, cabelos escuros soltos, calças justas e um top revelador! Na mão tem um casaco fininho. Sai de casa e olha em redor, perdendo algum tempo a olhar para a esplanada. Acena-me e segue para o outro lado da rua.

Não sei se ela sabe que eu sei o que fiz... Não sei se sabe que, por muito que eu queira, não haverá outra noite. Não sei se sei que haverão outras noites, só não estarei lá para saber. O que sei é que na próxima sexta, já tenho sítio para ir sair!

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Quarta-feira, Março 25, 2009

À noites as sensações, num quarto desconhecido...

Acelero rumo a norte, com a bússola dos sentidos desorientada. Não se pense, por falar em acelerar, que sigo a uma velocidade estonteante. Não! Não o consigo fazer... Ela, no banco do passageiro, está sentada de lado, a olhar-me e a acariciar-me de tal forma que meter as mudanças é tarefa complicada, pois a cada saída de rotunda, ou curva para a direita, a mão dela resvala da minha coxa em direcção à minha virilha. O percurso, que foi rápido, durou uma eternidade. Nos metros finais ela ia dando indicações, "vira ali, corta naquela, estaciona já que a minha casa é aquela", e eu obedecia cegamente, "sim, sim estou a ver", mas as imagens andam a mil e nem vejo bem onde estou. Do outro lado do rio, Lisboa, a boémia, olha-nos e sorri marota, como que dando a sua permissão para o que vai suceder.

Subimos as escadas de madeira para um primeiro andar. Não nos preocupamos com o ranger, mas não se pense que subimos a correr. Ela abriu a porta, deu-me a mão e passámos, um de cada vez, a estreita porta. Na escuridão guiou-me até ao quarto dela e não pude, apesar do grau de excitação, deixar de ficar abismado. De certo modo aquele momento fez a minha mente desfocar-se e ela, sentido que me estava a perder, aproximou-se pelas minhas costas e, com as mãos bem juntinhas à minha pele, começou a tirar-me a camisola. Fazia-o lentamente e com as palmas a tocarem-me o peito, acariciando-me e levantando-me a roupa. Quando a última manga passou pela minha mão direita, um puxão virou-me e dei comigo a olhá-la de frente.

Com as luzes reflectidas pelo rio a banharem-me as costas e as bochechas esfomeadas dela, comecei a sentir-lhe os lábios a acariciar-me a pele. Primeiro nas orelhas, descendo ao pescoço, uma trinca suave nos mamilos, a lingua a percorrer-me a barriga enquanto as mãos iam empurrando a roupa para baixo, com as unhas a percorrer-me o interior das pernas. Até que ela parou!

Parou porque os sapatos impediam as minhas calças e os boxers de saírem. Parou, mas não atrapalhada. Parou e olhou-me nos olhos e vi nos dela um brilho malévolo que teve consequências ao nível da minha virilha, reacção que despoletou um risinho por parte dela. Parou para me atirar para a cama, com um colchão algo mole e que afundava no meio e enquanto eu caía começou a despir-se da cintura para baixo, à medida que se aproximava da cama. Eu olhava e apreciava! O mesmo balouçar de cintura da pista de dança era agora repetido para expôr mais e mais rendilhado escarlate. Descalçou-se, retirou as calças, dobrando-se toda, com as nádegas redondas a balouçar, viradas para mim, junto à cama.

Acabou de remover as roupas, mas não se virou para mim. Ao invés, sempre de costas, colocou o joelho direito na cama e passou com a perna esquerda por cima de mim. Quando recuperei da estupefacção tinha os rendilhado vermelhos, onde se via uma penugem enfraquecida, a roçar-me na cara e sentia grande agitação nas virilhas. A partir daquele momento, senti necessidade de alinhar pela vontade dela.

Durante o que sobrou da noite, passámos muito tempo com o meu peito a tocar-lhe nas costas, em movimento perpétuos, em carícias sugestivas, mudando da cama para a janela, da janela para o chão, e ora se sentava ela em mim, ora lhe levantava eu as pernas, até que, derreados pelo esforço, cedemos à luz mortiça dos candeeiros de rua e adormecemos.

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Terça-feira, Março 24, 2009

Vagabundo

Vagueando as ruas da cidade
Com a mala cheia
Um espírito vazio e triste
O tempo a castigar o rosto
Com a chuva que refresca e liberta
Vai um homem perdido no caminho
Que sabe onde fica o seu fim

Soube outrora onde ficavam todos os lugares do mundo
Mas não sabia onde ficavam os lugares da alma
Perante uma demonstração de ignorância tal
Fez a sua mala com os sonhos da sua cidade
E partiu
Pelo mundo fora andou
Ficando mais burro a cada dia que passava
E agora que chegou à sua cidade
Descobriu que não a reconhece, não é mais sua.

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Segunda-feira, Março 09, 2009

Mutantes S21

Cresci a olhar o tejo. A ver os barcos a entrarem e a saírem num rodopio constante. Na altura, ainda a Lisnave era a Lisnave e não um deserto de ferro e cimento. Na altura, a distância de Almada a Lisboa era superior aos vinte minutos do barco e os sonhos iam-se diluindo nas sujas águas do Tejo. Cresci a olhar o Tejo e como ele prometi correr na direcção do mar, ver outros portos e outras paragens, marinheiro livre num mar prazeres imensos, por entre fumos e orgias, mortes e fugas.

Como o Tejo viajei pelo mundo, fiz-me nuvem negra de paradeiro incerto e numa manhã negra chovi em Almada, capital de todo o meu mundo e que contempla essa capital de província onde a nossa aventura começou. Foi num tempo agora incerto, em que não sabíamos quem éramos, uma viagem por todo um mundo novo, uma iniciação à arte de viver... E que bem nos soube viver! Saborear o doce néctar da libertinagem, galopar nas ondas dos sentidos inebriados e sair, desse turbilhão, adultos e acordados, saudosos para todo o sempre desses meses, desejosos que mais ninguém repita os nossos passos, mas com a vontade que todos façam a sua viagem, se libertem de si mesmos, que peguem naquilo que são e no meio da transcrição diária, que é a rotina do dia-a-dia, dêem um pontapé numa perna e se tornem num mutante de si mesmos, nunca retornando ao que eram, acumulando erros e erros como forma de evoluírem, de se libertarem dos espartilhos mentais que em nós são incutidos desde crianças.

...

Ao fim de tantos anos contemplo novamente o Tejo. Ouço as sereias dos barcos e vejo as ruínas da Lisnave. Nas ruas os putos arrastam-se sem objectivos, desfrutam os dias com a obrigação única de chegarem até amanhã sem envelhecerem. Os que dum dia para o outro envelhecem, cedo arranjam quem sustentar com o seu suor. Não é para mim esta vida. Olho o Tejo enquanto enrolo uma broca e lembro-me que foi com uma broca na boca que apanhei o táxi para o Casal Ventoso.

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Domingo, Março 01, 2009

Tempo

Tempo livre a mais
Enquanto geme na cadeira
O meu cérebro grita por mais
Tardes estendido na eira!

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Primavera

O Sol ergue-se das copas das árvores
Onde durante a noite reposou
Banhando de luz e apagando as dores
De todas as criaturas que um dia criou
A Natureza, embalada pelo encanto
Que lhe causava um estranho sentimento
De no mundo onde faltava tanto
Não haver quem desse contentamento
À vastidão imensa do nada
Que ficou com tal ocupação
Quando esse castanho que desagrada
Se transformava numa estação
Verde que é a Primavera!

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Sexta-feira, Fevereiro 27, 2009

Como fomos ao que fomos

Os seus lábios pareciam sussurrar algo. Naquele momento eu só ouvia a louca voz do desejo, mas não era esse desejo que ali estava, esse era mais lento e demorado, não o de um vôo directo para o ninho daquela ave. Naquele momento o meu desejo poderia ser saciado na casa-de-banho do bar, mas a voz que me sussurrava pedia algo mais, pedia-me que dançasse com ela (ou seria para ela?) e portanto seguia-a, não mais responsável pelos meus actos. Não era longe esse local onde com o corpo nos deviamos encantar, dois passos e estávamos mesmo no meio, ela a balouçar-se como uma serpente bem encantada, eu a olhar, como a águia que observa a sua presa lá do alto.
Naqueles instantes mirei-a de alto a baixo, os longos cabelos negros caídos sobre os ombros, tapando as alças do também negro top. Parecia não ter soutien, mas o par de rolas roliças a espreitar no seu decote, muito juntinhas uma à outra diziam o contrário. Também à espreita estava esse rendilhado escarlate, que quando ela lhe virava as costas assomava acima da cintura das calças de ganga, naquele momento as mais exóticas e atraentes do mundo, mas que à luz da manhã não passariam de um tapete no frio chão do quarto, que mais não faziam do que atrapalhar o andar.
Naquela noite não atrapalhavam! Pareciam o tecido mais ágil e elástico enquanto ela se contorcia e me ia enfeitiçando. Foi sem resistência alguma que a acompanhei até ao bar, reabastecemos o sistema alcoólico e ficámos ali à conversa. Não foi imediatamente, mas a mão dela acabou por tocar a minha. Seguindo a deixa, fui-lhe percorrendo o braço suavemente, com a parte de trás dos meus dedos, até que cheguei às já referidas alças. Ela virou-se um pouco de lado e com a outra mão conduziu a minha para o decote. Ali fiquei uns instantes a acariciá-la, até que de repente veio a ansiada proposta de ir mais longe, longe dali. Perguntou se eu tinha algo em mente e como eu demorasse a responder algo mais do que "Tenho o carro lá fora", ela sugeriu o quarto que tinha ali perto. Não a olhei nos olhos naquele instante. Olhei-lhe para o rabo, para as mamas, para as ancas, para as coxas, para a cintura, para todo o lado, menos para os olhos. O que não vi foi o olhar de luxúria que ela me deitava. Se o tivesse visto teria visto reflectido o mesmo olhar que lhe lançava, correndo o risco de nos cegarmos mutuamente.
O pensamento de uma casa, de um quarto, as imagens que daí vinham, o antecipar... Tudo me cegava naquele percurso, todas as imagens apetecíveis desligavam pouco a pouco o meu cérebro para os estímulos diferentes daqueles que ali estavam sentados ao meu lado. Os estímulos dispararam o inconsciente "Vamos!" que respondi...

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Quarta-feira, Fevereiro 18, 2009

À noite, antes do quarto à beira-rio

É noite. A noite que antecede a manhã que anteriormente narrei. Encontro-me num bar sozinho. Estava em casa e apeteceu-me sair. Apeteceu-me assim sem mais nem menos, sem nenhum motivo aparente, mas a verdade é que todos os nossos actos são definidos por aquilo que decidimos e não como voltar atrás. Se hoje pudesse voltar atrás não mudaria aquele momento, tê-lo-ia antecipado em vários dias, para que depois dele houvessem mil outros! Fui para um bar na vila piscatória, onde tudo o que se pesca é turistas. Turistas e gajos como eu, em bares frequentados por putos e pitas, o mais velho deles com idade para ser meu filho. Nenhuma delas no entanto se parece com filhas minhas. Eles são claramente putos, como se diz em inglês “boys will be boys” e não há roupa ou atitude que o disfarce. Um rapaz que se porte como homem no máximo faz ar de parvo e idiota. Um homem que se porte como um rapaz está apenas bem disposto e com ar de jovem. Muitos deles ainda nem eram projectos de filho quando as músicas que tocam foram feitas, alguns deles provavelmente foram pensados ao som das músicas mais melosas. Um amigo meu, americano, que um dia ali esteve comigo disse-me que “this bar has plenty of eye-candy for all” e a verdade era mesmo essa. Miúdas, mulheres, rapazinhos e homens feitos. Num canto um casalinho de gajos, da minha idade mais ou menos, comia-se discretamente, e uma pitareca, no meio da pista, entretinha-se a acariciar gentilmente o rabo a um amigo, enquanto o avô dela a abraçava por trás, num acariciar de seios nada discreto. Foi a observar este clima que a vi encostada ao balcão. Não sei o que me chamou a atenção, mas o que é certo é que num instante estava a condenar moralmente aquele velho rebarbado, no outro estava a imaginar conversas com aquela mulher. Porque era uma mulher que me parecia, ali, de copo na mão, a olhar para a pista.
Tinha o cabelo liso e solto, que lhe caía pouco abaixo dos ombros, uma pele pálida e um sorriso de animar um velório. É verdade que, sentado à janela de casa dela, quando olho para a cama não consigo pensar o que me atraiu nela, mas naquela noite parecia Afrodite encarnada e não consegui desviar nem olhar nem pensamento, até que ela, vendo-me a contemplá-la, se dirigiu a mim.

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Terça-feira, Fevereiro 10, 2009

De manhã à beira-rio

Acordo de manhã, o rio à minha frente, à esquerda o oceano.
Acordo e vejo na cama uma bela rapariga. Percorro-lhe com o olhar as curvas do corpo semi-nú, tapado, aqui e ali, pelos finos lençóis com que nos protegemos da brisa nocturna. Olho novamente o azul esverdeado do rio, que reflecte o brilho intenso do sol do meio dia. Deve ser já tarde, mas porquê ter pressa? Não há pressas que me tirem a noite passada. Vejo ali ao meu lado o corpo de uma bela rapariga. Agora despida de maquilhagem e de roupas não me parece mais do que uma adolescente. Se calhar é uma adolescente... Que diabo, se é uma adolescente a verdade é que se portou como uma mulher bem adulta!
Ela dá uma volta na cama. Irá acordar? Não, está apenas a aproveitar o espaço extra. Penso por um instante em arranjar-me e sair de casa, mas por algum motivo não o consigo e fico ali parado a olhar o rio que flui para o mar. Não dou comigo a pensar nela, ela é apenas umas palavras cordiais, um número de telefone que já não uso e um “adeus até nunca mais”, que nunca será dito. Provavelmente ela ou já pensou o mesmo, ou irá pensar quando acordar, afinal que atracção vem de duas pessoas que se conheceram num bar na mesma noite em que uma delas leva a outra para a intimidade do seu lar?

Não é nela que penso mas sinceramente, também não penso em mim. Penso apenas na paisagem, penso nos tons de verde que o rio reflecte. Foda-se, deve ser a paisagem mais espectacular que já vi. A vontade que dá é de ir para a marginal que passa logo por baixo da janela daquele primeiro andar e andar para trás e para a frente, a contemplar os pássaros. Será que este prazer me vai ser negado por muito mais tempo, apenas pela consciência que tenho de me despedir frontalmente de uma fonte de outros prazeres, que há muito chegaram ao oceano do meu ego?

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Sábado, Janeiro 10, 2009

A Morte

A morte vem devagar
Devagar com seus passos suaves
Para não nos incomodar
Traz na mão o encanto de uma vida
Plena e cheia de alegria
Com que nos seduz e bajula
Esses encantos próprios da sua
Condição terminal

A morte é uma criança
Inocente e cheia de esperança
Que o dia de amanhã é eterno
Dura para sempre e não acaba
A morte não sabe nada
Aparece e tudo muda
Tudo se altera, nada fica como era

A morte não é o fim
Mas a morte não é o princípio
A morte é mais um dia, um mês, um ano
Todo um estado em que estamos
E em que nada precisamos

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Terça-feira, Dezembro 16, 2008

Erguendo as Velas Rumo ao Sol Poente

De repente uma voz ergueu-se acima de todas as outras. Cantava, mas não havia instrumentos e o som daquela voz aquecia a alma de todos. Cantava naquela língua rude e áspera de terras onde as noites duram dias e não há escravos nem senhores. Cantava, numa toada entristecida que alegrava. Cantava sozinha, mas rapidamente todos começaram a cantar com ela, e quando me apercebi também já eu gritava a plenos pulmões:


Os dias crescem
O calor aumenta
A comida falta
A fome aperta
Escravos morreram
Há gente que falta
Lenha escasseia
Na floresta farta.

Jovens enérgicos
Com ímpeto guerreiro
Cresceram no escuro
De que é o Inverno feito
Chegados ao calor
Que traz a Primavera
É vê-los com sede
De mulheres e de guerra.

Tapamos os buracos
Que têm os cascos
Pintamos os escudos
Afiamos o aço
Bebemos cerveja
A pensar em igrejas
Vêmo-las a elas
A tear nossas velas.

Os dias vão longos
E sem negros assombros
Monstros adormeceram
Velas se ergueram
Mulheres se amaram
Rapazes cresceram
Homens para a guerra
Nos barcos partirão.

Ninguém se despede
Nem chora nossa partida
Os ventos da fortuna
Levam-nos nesta nossa vida
Partimos de tarde
Chegaremos de dia
Terror transportamos
Na ponta dos nossos braços.

Ferro, fogo e destruição
Tudo levamos até outra nação
Lá não nos esperam
Não sabem ao que vamos
Agarrados aos remos
Navegamos em frente
Erguendo as velas
Rumo ao Sol Poente.

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Segunda-feira, Dezembro 15, 2008

O Velho

E o velho olhou para ti
De alto a baixo contemplou-te
Mirou-te, e na sua velha mente
Violou-te...

O Velho, esse velho de pele
enrugada, que dentro de si
tinha ainda uma criança,
Esse velho olhou para ti,
Imaginou-te
E seguiu viagem.

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Terça-feira, Setembro 02, 2008

Quando...

E quando queria saborear
Esse teu rosto fechado,
Rasgava-te os lábios
Com meus dentes afiados.

E quando queria rasgar
Esses teus lábios encarnados,
Beijava-te de paixão
Enquanto rebolávamos no chão.

E quando quis sentir
Esse teu corpo perfeito,
Abri com as garras
Esse teu branco peito.

E quando a paixão
Foi embora de meu corpo
Atirei-me com teu cadáver
Para o fim do rio da dor...

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Quarta-feira, Julho 09, 2008

Para a Bruxa Encornada

Mel que escorrega viscoso pela alva pele
da Usina que te aquece o corpo quando o arqueias
quando te percorrem essas mãos delicadas
quando mergulha, essa tua musa, por entre as tuas pernas
donde brota esse mel...

Mato espesso que outrora era
aparado à força de dentadas violentas
que essa tua amiga te dava
quando nas costas cravava profundas
garras afiadas em tons de verniz escarlate.

Armações, dos antigos xamãs europeus
Cornos ornamentais pendurados nas casas das bruxas
Aquelas que comiam os filhos que não querias ter
Aquelas que te conduziram até onde não sabias ir
Aquelas que te percorreram o corpo, te furaram vezes e vezes sem conta
Com a sua língua afiada
Aquela outra que não vias na tua cama deitada
Que te deixou hoje uma mulher frustrada
E dos filhos dele será sempre a mãe amada...

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Segunda-feira, Abril 28, 2008

Guerra de Irmãos

Uma névoa fria banhava aquela manhã. No alto do monte, cuja relva ia perdendo os tons rubros da batalha que aí se desenrolara, encontraram-se finalmente, após todos estes anos. Olharam-se olhos nos olhos e o que viram nos do outro foi uma escuridão imensa. Olharam-se como os irmãos que eram. Como irmãos que não se falavam havia já muito tempo, demasiado tempo... Tempo em que haviam deixado que os seus exércitos se travassem de razões, um pouco por toda a parte, por um motivo que já nem era claro nem para um, nem para o outro. Ao seu redor os corvos e as aves de rapina banqueteavam-se! Parecia impossível, mas apenas restavam dois. Naquele campo, onde durante uma semana homens lutaram, homens morreram, homens entraram para a história, apenas dois restavam, eles os dois, que haviam começado aquela guerra, seriam também quem acabaria finalmente com ela.

Soprou um vento frio que arrastou os largos cabelos que ambos possuiam. Não diziam nada, olhavam-se. Não sabiam bem o que procurar na cara do outro. Podia ser que se lessem, podia ser que travassem um duelo mental, podia ser que procurassem perdão.
Não há perdão, não houve, nem nunca haverá à face da Terra quem possa perdoar os dois irmãos. Só Deus, se algum dia diante d’Ele se encontrarem, os poderá perdoar. As histórias que se contam é que o motivo pelo qual a guerra durou tanto tempo é porque o próprio Diabo os expulsou do Inferno. Ninguém diria no entanto que se enfrentavam os dois seres mais malévolos que já caminharam à face da Terra. Ambos pareciam jovens, mas cansados. Via-se que o peso de muitas batalhas lhes dobrava as costas. Via-se no seu ar muitas almas que clamavam por vingança.

Um clamor surgiu então nesse monte. Nos campos em redor, os mortos pareceram levantar-se, as suas armaduras quebradas a tilintar, os seus ossos pendurados e inertes mas as suas almas a clamarem por paz. Ambos os irmão souberam o que os mortos pediam e ambos viram aí o prenúncio do que aconteceria... perceberam então que, todos estes anos, mais não fizeram que adiar o inevitável. Teriam de ser eles a acabar com o derramamento de sangue. A altura de mandar outros para a chacina havia terminado...

Começou o da armadura negra por retirar a mesma. Ficou em tronco nú, segurando apenas uma espada larga, feita mais para ser usada como moca e como espeto do que objecto de corte. O da armadura branca pareceu anuir ao desafio e retirou a sua armadura e ficou a segurar uma espada em tudo idêntica à do seu irmão. Olharam-se mais uma vez longamente. Não havia entre eles receio, havia sim algo que os impedia de se lançarem um contra o outro. Finalmente, depois de tantos rios de sangue derramados perceberam que matar só era fácil quando não é o nosso sangue o derramado. Avançou então um, difícil dizer qual no meio da neblina e sem as armaduras que os identificavam, e o outro respondeu com um passo igualmente seguro em frente.

O vento era agora mais forte e trazia as vozes dos milhares de mortos que clamavam por vingança, já nenhum defendia um dos irmão, mas sim a morte de ambos! Ambos sentiam um frio maior do que aquele que lhes arrepiava a pele. Naquele momento era algo maior que eles que ali estava em questão e cada um lutava contra os milhares de mortos que causara no exército do outro. Apenas eles haviam sobrevivido, não porque fossem generais que não lutam, isso não, ambos investiam a pé, na frente dos seus exércitos, não, a explicação era outra... Ambos haviam sido treinados pelo mesmo mestre, o maior general do seu tempo e ambos haviam sido o seu maior discípulo. Dominavam todas as armas conhecidas como nenhum homem do seu tempo, mas aquelas espadas eram a fonte de toda a discórdia. Ambas possuiam poderes mágicos, que faziam do seu portador invencível. Ciente de que tal poder nas mãos de um só homem seria perigoso para todos os outros, o general havia oferecido uma a cada um dos seus discípulos. Não tardou que cada um desejasse para si a espada do outro e daí até à Guerra dos Irmãos foi um passo.

Muitos anos haviam passado e ambos haviam liderado os seus exércitos, recrutados com promessas de glória e fortuna, mas nunca revelando o poder das espadas aos seus soldados ou generais, muitas gerações de homens passaram e a Guerra dos Irmãos tornou-se na Guerra Eterna, travada entre exércitos maiores do que a imaginação consegue visualizar e sempre com duas figuras eternas a liderar. Dizia-se que era uma luta entre o Bem e o Mal, com o Mal a ser sempre o irmão opositor. Havia lendas construídas em redor de batalhas lendárias daquela guerra, mas aquela, no Monte Nodegamra seria a última, as espadas invencíveis conheceriam hoje a derrota.
À medida que se digladiavam o cansaço apoderava-se de ambos por igual medida. A cada um a espada ia sugando o que lhe restava de vida. Continuaram naquela dança macabra por dias e dias até que finalmente e em simultâneo, tolhidos pelo cansaço, tiveram o mesmo movimento em falso, rapidamente aproveitado pelo irmão para enterrar a espada no seu coração...

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Quarta-feira, Fevereiro 13, 2008

HOJE À NOITE

Hoje à noite vi-te no teu quarto.
Estavas só, sem ninguém...
Para lá de ti só eu,
Com os meus olhos, a ver-te ao longe.
Percorri as tuas costas enquanto
Te despias com desdém.
Queria ter-te comigo num quarto meu
Onde a distância me deixasse abraçar-te.

Hoje à noite vou sonhar contigo.
Vou-te ter aqui, abraçar teu corpo
branco e robusto, cheirar os teus cabelos perfumados,
Amarra-te à cama e ficar a olhar-te.

Hoje à noite vais ser minha!
Vou-te possuir de todas as formas,
Seremos pela noite dois animais com o cio.

Hoje à noite será a noite em que venço esta distância!

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Quarta-feira, Maio 31, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

A Vidente sentiu-se desfalecer e não fora segurarem-na pelos braços, encontrar-se-ia prostrada no chão a carpir a sua predilecta, que havia caído aos pés do seu maio inimigo.
Ele parecia não se importar com o que havia feito. Não era a primeira vez que matava e não sabia quantas vezes mais o teria de fazer. Caminhava agora em direcção à Vidente, parando a pouco mais de dois passos dela.
-E nós? Como vai ser?
-Pára por favor! – disse o Obreiro – Eu levo-a para longe da Montanha se o pedires, mas peço-te que páres. Como tu disseste, já foi derramado sangue que chegue. Peço-to como favor pessoal.
Ele olhou-o nos olhos, olhou para ela e recuou alguns passos.
-Obrigado...
-Pediste-mo como favor pessoal e concedo-to. Podem levar com vocês todos os vossos pertences e todos os que vos quiserem seguir. Todos os que partirem com vocês nunca mais serão benvindos ao vale. No entanto tal não se aplicará aos vossos filhos, para quem o vale será sempre um refúgio.
-Basta! – gritou a Vidente – Não vou deixar que estranhos discutam o que façam e ponham termos à minha vida. – E pegou na vara do Impulsivo. – Muito bem... Se tem que ser, que seja então! – E ao calar-se carregou sobre o Exilado, que surpreso se limitou a amparar os golpes de fúria da Vidente. Esta, cega pela raiva, não se apercebia que ele não se movia. Até que ele ao bloquear um golpe, a rasteirou em resposta.
-Pára. Aceita a derrota e junta-te aos teus. Ainda tens quem se preocupe contigo, quem acredite em ti, quem te siga. Porque não páras?
Ela não respondeu. O Obreiro apelou-lhe também para que ela aceitasse a derrota. O Exilado chamou-lhe a atenção para o facto de estar em clara desvantagem. Mesmo assim, ela ergueu-se e avançou novamente para ele. Desta vez ele esquivou-se e voltou a rasteirá-la.
-Pára! Não chegou já a Discípula? Pensas que tenho prazer em matar? Pensas que gosto de o fazer?
-É o preço que pagas! Destruiste a minha tribo, atraiçoaste-me e agora mataste a minha preferida. Lamento, mas isso só se resolve quando um de nós matar o outro.
Ele emitiu então um som semelhante ao de um ramo seco a mexer-se ao sabor do vento e os corvos investiram em direcção à cara dela. Quando finalmente se afastaram levavam cada um um olho como troféu e deixavam uma Vidente histérica de pavor e dor.
-Desculpa Obreiro, foi a vontade dela acima da tua. – E avançou para o corpo que se contorcia, ergueu a vara e com uma só pancada seca acabou com a agonia daquela que em tempos fora a sua protectora.

Duas piras ardem no centro da Clareira. Junto a uma delas o Obreiro contempla as chamas com um olhar vago e distante, os seus olhos a guardarem lágrimas que teimam em não cair, as mãos agarradas atrás das costas e a expressão rija como pedra. Junto à outra fogueira o Impulsivo chorava de dor, das duas dores que sentia, a física e a emocional. Só quem o conhecia sabia como ele carregava a esperança daquela relação impossível e agora a esperança acabava. Para sempre! No meio das árvores, um pouco mais atrás, dois vultos observavam. Haviam ficado ali durante toda a cerimónia e quando todos se haviam ido embora, decidiram ficar na sombra, para não incomodarem quem chorava os mortos.
-E agora?
-Agora não sei.
-Mas que tinhas planeado para depois disto tudo?
-Nada. Nada disto era para ter acontecido. – hesitou – Não planeei nada disto, esperava-a sozinha, esperava falar com ela, chegar a um entendimento. Esperava que o tempo a tivesse mudado também a ela, que fosse possível agora falar, não esperava matar ninguém. Acima de tudo, não queria nem esperava, que ela tivesse de morrer. – E ao calar-se correu-lhe uma lágrima pela face.
-Não fiques assim. Ela é que escolheu o caminho dela. Sabes... Foi pior para ela ver que tinhas razão! Depois de tudo o que se passou, ela percebeu que estavas certo, percebeu que também tinhas o dom e que o teu era mais aguçado e mais exacto que o dela. Invejou-te. Desejou ser como tu, desejou ter-te com ela e ao mesmo tempo odiou-te, porque nunca te submeteste à vontade dela, porque foste sempre fiel a ti próprio e às tuas ideias. Não te remoas se as coisas tomara um rumo com que não contavas.
-És capaz de ter razão!
-E agora?
-Agora? Não sei. Há tanto a fazer, devolver a normalidade ao nosso clan e lidar com a tribo dela. É isso. Agora a normalidade. – E sorriram um para o outro, antes de se abraçarem e virarem costas às piras


--->O FIM<---

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Domingo, Maio 28, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

A lua cheia iluminava as copas das árvores. Da aldeia dos Nómadas saía um triste cortejo. As tochas caminhavam silenciosas e com com passos pesados, no meio apenas uma figura não carregava nenhuma, segurando nas suas mãos apenas uma vara talhada com estranhos caracteres. A seu lado, segurando duas das tochas maiores, caminhavam duas figuras um pouco mais altas, cada uma com um grande vara bifurcada, nas quais se apoiavam a cada passo. Iam avançando decididos para o interior da floresta, em resposta ao desafio que havia sido lançado à Vidente. Quando o primeiro dos Nómadas entrou na floresta levantou-se uma enorme ventania e todos se apressaram para dentro do mar verde. Um pouco mais longe o Exilado ordenava que se acendesse a Clareira e dizia à Aprendiza que "A Vidente não vem sozinha.". Quando a lua se encontrava no seu ponto mais alto o cortejo dos Nómadas entrou na Primeira Clareira. À sua espera dezenas de Caminhantes, cada um segurando a sua vara e uma tocha. A Vidente olhava-os um a um e, quando confrontados com o seu olhar, eles respondiam em pose de desafio. À sua direita a Discípula apenas olhava para o Exilado. Sentia-se ainda humilhada com o resultado do encontro dois dias antes e pretendia desforrar-se. No lado oposto o Impulsivo parecia calmo e aceitava que havia feito por merecer estar ali e naquela posição. Havia já algum tempo que discordava da formo como a Vidente conduzia os destinos da tribo e achava que todo o assunto devia ser resolvido entre ela e o Exilado. A fechar o cortejo vinham o Obreiro e o Passivo, desarmados, destinados apenas a observarem.
-Porque não os deixaste na aldeia? Tens necessidade de os arrastares contigo?
-São o meu povo, seguem-me!
-Vejo que uns é que são seguidos por ti e não te seguem. Porque não os deixas partir? Não foi já derramado sangue inocente que chegue por tua causa?
-O sangue dela não era inocente. - rugiu a Vidente.
-Quer o sangue dela, quer o dos que a seguiram. Todos inocentes. O sangue do Músico, o sangue do Novo e de todos os seus irmãos. Tudo por causa de um capricho teu... Olha bem para ti. Onde estão os que te seguiam? Nem todos os que te seguem acreditam na tua causa, se assim não fosse, porque deixariam as varas na aldeia?
-Falas do que não sabes! Sabes o que te contaram bocas envenenadas... - ele interrompeu-a.
-Cala-te! Se me vieste aqui para me envenenares o espírito com conversa cala-te já!
-Oh! Não te conhecia essa faceta sensível. Mas olha, não te vejo com nenhuma das tuas varas. A cerimonial está longe demais para a ires buscar antes que eu a reclame como minha e a de combate já se deve ter perdido.
-Erras em ambas as presunções. Vejo nos teus olhos e percebo-o na tua voz: estás a desafiar-me, mas para o teu desafio não tenho resposta. Tenta-me. Já sei que viste a vara pendurada nessa árvore, por cima de ti. Tenta alcançá-la.
-Impulsivo: dá-ma!
Sem hesitar o antigo Caminhante saltou para alcançar a vara. No entanto, quando se encontrava quase a agarrá-la, alguém o atingiu nas pernas, desequilibrando-o e fazendo-o cair de costas no chão rugoso da floresta. No instante seguinte, várias luzes começaram a acender-se nas copas das árvores, revelando muitos dos antigos Caminhantes, os que se pensavam longe da aldeia, que ali se encontravam.
-Constou-me que perdeste o apoio da verdadeira chama dos Caminhantes. Ah! E se consegues ver bem, consegues ver que ela não está apagada.
-Impulsivo: ele! - ordenou a Vidente. Sem lhe dar tempo de reagir , a Aprendiza saltou para o chão e atingiu-o violentamente nas pernas, partindo-lhas e saíu a correr para o lado direito do Exilado. A Vidente estupefacta não reagia. A Discípula olhava-o agora com raiva redobrada, mas aquele golpe havia-lhe quebrado a confiança. No chão, o Impulsivo contorcia-se de dores. Nunca soubera suportar a dor e a dor das duas pernas partidas juntava-se ao choque e ele não passava de um aglomerado de urros de dor e lágrimas. O resto da tribo dos Nómadas começava a recuar para fora da Clareira.
-Deixa-os partir. - ordenou o Exilado - Isto é entre tu e eu, eles são inocentes, a maioria nem me conhece. És tão egoísta que os arrastas contigo para o fim?
No instante em que se calou a Discípula carregou para ele. Um caminhante que se pôs à sua frente foi atingido na cabeça, um outro no lado, ficando ambos mortos no chão. A Discípula avançava para ele, com a intenção de o atingir no lado, mas ele esquivou-se da mesma forma que já havia feito, ficando virado de frente para as costas dela. Ao mesmo tempo a Aprendiza tentou atingir-lhe uma das mãos. A Discípula havia sido no entanto bem treinada e esquivou o golpe da sua adversária e contra-atacou, atingindo-a no braço, quebrando-o e preparava-se para a atingir na cabeça quando uma das suas mãos pareceu rebentar. Imediatamente perdeu controle da vara e largou-a. Um corvo debicava-lhe a mão enquanto outro voava em direcção ao Exilado, largando uma vara estreita e alta, toda ela lisa e escura. Assim que o Exilado empunhou a sua vara de combate ambos os corvos se dirigiram ao alto de uma das árvores.
-Vejo que continuas com apetência para os mais fracos Discípula. Anda cá e bate-te com alguém à tua altura... - os olhos dele já não eram olhos humanos, pareciam negros como a noite, como se por dentro todo ele fosse uma sombra escura. Nessa escuridão parecia brilhar uma fúria assassina.
-Não. Tu... Vais pagar por tudo! - pegou na vara dela e tentou defender-se, mas ele havia crescido muito para além da capacidade dela. O primeiro golpe dele desfez-lhe a vara em duas. Este golpe gelou o sangue da Discípula. Aquelas varas haviam sido envelhecidas pelo fogo e conseguiam aguentar vários golpes. Aquele único golpe partiu-lhe a vara e a confiança, a partir daqui só lhe restava um destino. Ele no entanto não parou apenas com um golpe. Revelando um sadismo que ninguém lhe conhecia, desferiu imediatamente um segundo golpe, o qual partiu o braço da mão ainda boa, e um terceiro golpe na bacia, o que lhe imobilizou uma das pernas, para em resposta lhe partir a outra. A Discípula só conseguia urrar de dor e as lágrimas era um rio na sua face. A Vidente gritava por piedade e avançava já em direcção a ele quando o Passivo e o Obreiro a agarraram e obrigaram a assistir ao massacre.
Com a Discípula estendida no chão, ele atingiu-a repetidamente nas pernas, até as pernas delas não passarem de membros flácidos.
-Pareceu-me que perfuraste um pulmão um Caminhante, durante a tua corrida. - e atingiu-a violentamente num lado. Para ela a pancada significou imediata dificuldade em respirar e uma dor aguda. - Já agora aproveito e furo-te os dois. - Uma pancada no outro lado, a sensação de falta de ar. Por esta altura a Discípula já não gritava, faltava-lhe o ar e limitava-se a soluçar assustada. Estava no limite da consciência, o desmaio e o negro que se lhe seguia eram iminentes. - E também me parece que rachaste uma cabeça! - Deu-lhe uma pancada na cabeça, mas não tão violenta que, ela perdesse os sentidos. Foi assim, ainda na posse de algum grau de consciência que ela sentiu a vara dele perfurar-lhe o peito e parar-lhe o coração. - Adeus. - disse ele, com o ar mais impávido e sereno.

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Domingo, Maio 07, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

-Quando foi que a Vidente entrou na aldeia dos Caminhantes?
-Faz amanhã duas Fases.
Silêncio. De repente ele solta um riso discreto. Era a primeira manifestação de alegria desde que haviam iniciado a caminhada.
-Disseste que ela estava assustada e que queria as minhas varas, não foi?
-Assim por alto foi isso.
Soltou então duas palavras imperceptíveis e os corvos que os haviam seguido à distância aterraram-lhe nos ombros. Falou-lhes num dialecto parecido com folhas secas a serem pisada e ramos a partirem-se. Quando se calou os corvos esvoaçaram, cada um na sua direcção.
-Isso é para me fazeres acreditar que consegues falar com aves?
-Não te quero fazer acreditar em nada. O que te digo é que não são só aves. - Ficou a olhá-la e depois continuou. - Preciso da tua ajuda. Vai até à aldeia dos Caminhantes e diz a todos os que estão connosco para virem ter comigo aqui amanhã à noite. Eles que venham preparados para ficarem cá se necessário. Entretanto tenho assuntos pendentes a tratar... - Calando-se caminhou em direcção à floresta, a sua vara de caminhante numa mão e o cajado do velho na outra. A sua vara de combate, essa não estava em lado nenhum!...

A Discípula caminhava apressada para a aldeia dos Nómadas quando se apercebeu que um corvo voava em seu redor. Primeiro em círculos largos, depois tão perto dela que as penas dele por duas vezes lhe provocaram escoriações na face. Quando parou reparou que o corvo voou para longe dela, mas quando retomou a marcha ele reaproximou-se.
-A menina não sabe pedir com delicadeza a um simples pássaro que a deixe sossegada?
Aquela voz que se lhe dirigia, vinda de trás de si, era estranhamente familiar, mas não podia ser, aquela voz havia desaparecido há muito tempo!
-Não... - disse enquanto se virava.
-Olá Discípula, voltei! Não estás a sonhar, não estás a ver coisas, voltei e esse corvo é um servo meu. Sabes quem servem os corvos não sabes?
O silêncio entre os dois era imenso e absorvia os pequenos sons da floresta. Entre eles não se pronunciou palavra, mas ela olhava-o com um misto de desdém e desafio.
-Ela era capaz de gostar de te ver agora. Podia ser que percebesse todas as escolhas erradas que fez. Esse teu ar não esconde a estupefacção, não me tentes fazer passar por parvo! - Calou-se. Como não obtivesse resposta continuou. - Não faz mal. Ela vai perceber!
O que se passou a seguir foi demasiado rápido para que a Discípula se apercebesse. Lembra-se de avançar para ele, vara apontada à cabeça, mas quando estava quase a atingi-lo ele rodou para o lado de fora dela e atingiu-a violentamente na nuca. A seguir foi a penumbra.

A Vidente encontrava-se na sua tenda, inalando fumos, quando na aldeia começou um burburinho imenso. Esse mumúrio inicial cresceu até que se tornou o som de uma multidão. Sem hesitar lançou um dos seus habituais gritos estridentes, que gelavam o sangue aos habitantes do vale. Como não provocasse efeito nenhum audível, levantou-se e dirigiu-se ao exterior. O que viu deixou-a abismada. Ali, no meio da aldeia, encontrava-se o Exilado, olhando-a nos olhos com uma expressão inabalável de triunfo. Ao seu lado, estendida no chão e inconsciente, a sua predilecta. Em seu redor todos os Nómadas incrédulos com a cena que presenciavam.
-Já há muito tempo, que não nos falamos. Vi os mesmos sinais que tu e soube o que procuras. Uma vara tenho-a comigo, a outra está guardada. Posso entrar para falar contigo a sós, ou queres que o faça à vista de todos?
-Ela... - disse apontando para o corpo inanimado no chão.
-Acordará a qualquer altura.
-Segue-me. - e dirigiu-se para a cabana dela.
Entraram ambos na cabana, enquanto o resto da tribo observava o corpo inerte da Discípula.
-Estou velha demais para lutar contigo...
-Quando se recusa uma luta tem-se o cuidado de não a procurar.
-Não fui eu que entrei pela aldeia adentro.
-Não fui eu que te expulsei, nem fui eu que procurei as tuas armas perdidas.
-Porque as minhas nunca se perderam.
-As minhas também não!
-De qualquer das formas, já não sou a mesma.
-Nisso tens razão. Aparentas não estar fisicamente capaz, mas sei ver as tuas mentiras. Conheço os teus poderes e a tua força. Vim aqui apenas para dizer que aceito o teu desafio.
-O meu desafio?
-O que deixaste escrito nas cinzas da Primeira Clareira...
-Viste-as portanto?
-Vi-as portanto! Os termos são os seguintes daqui a duas noites, nessa mesma clareira espero-te com os meus. Levas certamente os teus, certo?
-Esperas-me com os teus? Quais teus? O povo disperso, os perdidos e sem rumo? Falas desse povo? Os Caminhantes já não têm o sangue puro e a chama do caminho não arde na aldeia desde há muitas Viagens. Hoje nem sequer se lhes pode chamar uma sombra do que foram outrora os Caminhantes. Os teus, é isso que lhes chamas? Os únicos de valor entre os teus preferem seguir-me e residirem na aldeia dos Nómadas a alinharem nas passeatas dos Caminhantes e tomarem o seu caminho. É com esse povo que me esperas?
Durante uns intantes nenhum dos dois se falou. Olhavam-se olhos nos olhos e dir-se-ia que travavam uma batalha silenciosa. Na face de um e outro escorriam gotas de suor, fruto da tensão aliada ao calor extremo dentro da cabana. Finalmente ele optou por responder:
-Aqueles que tomo por meus não te seguiram, nem te seguirão. A Chama que dizes estar apagada ainda brilha o suficiente para criar sombras onde tu e eu não vemos. Tens o dom da Visão. Eu também o ganhei na minha ausência. Ambos sabemos que não viverás outra Viagem. O que ambos não sabemos é se eu viverei essa mesma Viagem. O que ambos não sabemos é o como as coisas acontecem. O que não sabemos é se as sombras são as tuas se as minhas. Sei que tens poder sobre os Anciãos, mas isto é entre tu e eu. No teu lugar deixava os Anciãos em sossego.
-Que te leva a crer que os poderia usar?
-Conheço-te e às tuas acções melhor do que tu pensas! Tentaste usá-los contra mim uma vez. Tentaste usá-los contra a aldeia dos Caminhantes. Desta vez se os tentas usar deixo-te viva para veres os que tomas por teus tombarem à minha mercê e nem penses que ficas para o fim, deixo-te viva, com a dor...
Ambos voltaram então ao duelo silencioso, mas como nenhum dissesse mais nada ele levantou-se e ao sair acrescentou:
-Dou-te uma noite para reflectires sobre o que queres fazer. Conheces os meus termos, mas acrescento uma nova exigência: que vás sozinha. Se fores sozinha esperar-te-ei sozinho também, senão por cada um que te acompanhe, um outro o esperará, palavra do Caminhante. - dizendo isto saiu porta fora e deixou-a entregue aos seus pensamentos.

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Domingo, Abril 16, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

O dia amanheceu claro. O sol brilhava por entre as ramagens e no ar pairava um aroma fresco a orvalho, apesar de a vegetação estar toda ela seca e a própria terra dura, de há tanto tempo não ver gota de água. Quando Aprendiza abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi o enorme corvo que a olhava. Ficaram assim por uns instantes, a olharem-se olhos nos olhos, até que o enorme pássaro levantou vôo e veio pousar junto às cinzas fumegantes do que na véspera havia sido uma fogueira. Levantou-se e assim que olhou em seu redor viu o campo deserto, mas por entre as árvores corria um leve assobiar. Pegou na sua vara e dirigiu-se para a origem do som.
-Está-se a tornar um hábito andares sempre na defensiva! - ouviu o seu companheiro dizer-lhe quando chegou junto dele.
-Sintomas dos últimos tempos... - lamentou-se.
-Fazes bem, mas olha que isso de estares sempre tensa e retesada não significa que estejas em condições de te defenderes.
-E o que é que tu sabes disso? - ele, sem dizer nada, olhou para ela sorriu lançou-se a ela, retirou-lhe a vara das mãos e executou um movimento de ataque que só parou junto ao joelho direito dela! Ela ficou a olhar pasmada, mas não disse nada.
-Ontem ainda andou gente no teu campo. Uma mulher para ser mais exacto.
-A Discípula!
-Não. A Discípula está no Grande Vale - calou-se por uns instantes -, mas de facto é alguém parecido com ela...
-Estás a falar do quê?
-Das pegadas.
-Pegadas? Neste chão duro?
-Olha para o chão debaixo dos teus pés e diz-me que não deixas lá nenhuma marca.
Levantando um pé, ela reparou que as ervas secas se apresentavam esmagadas, descrevendo com perfeição o local onde o seu pé havia estado.
-Pronto... Pegadas!
-Não sei quem foi, mas a direcção que tomou é aquela que nós também vamos tomar.
-Não regressamos à aldeia?
-Regressamos, mas podemos acompanhar o trilho nos primeiros passos uma vez que se dirige à montanha.

Acompanharam o trilho alguns passos mais do que os primeiros. Poderiam inclusaivamente tê-lo acompanhado na totalidade, se Exilado não conhecesse os atalhos da Montanha. Aprendiza por sei lado sentia um enorme fascínio por aquela figura que a guiava através de árvores e fragas, sempre caminhando em silêncio, com a sua figura alta a olhar o cume. Interrogava-se sobre o que se havia passado desde a última vez que se viram, o que ele havia visto, o que ele havia vivido e de tudo isso o que o havia transformado naquela figura silenciosa e soturna, que simultaneamente irradiava calma e confiança, como que se rodeado de uma aura de tranquilidade, enquanto que por dentro era corroído por uma batalha. Ele por seu lado não deixava de pensar, a cada passo firme que dava, sobre o que fariam quando chegassem à aldeia. Em particular o que ele faria! Tinha decidido dirigir-se à aldeia dos Caminhantes em primeiro lugar, eram o seu povo e recusavam poderes de fora. Por outro lado haviam já passado tanto tempo que receava ser visto por eles como alguém de fora. Era presos a estes pensamentos que continuavam Montanha acima, olhando-se ocasionalmente e rapidamente cortando o olhar. Quatro dias passaram na Montanha até finalmente chegarem à Primeira Clareira. Em tempo vivera aqui a tribo dos Nómadas. Era o primeiro de muitos campos que tinham, até chegarem ao Grande Vale, local onde passavam os dias quentes do ano. Nada restava desse campo glorioso exepto as cabanas e os restos de uma fogueira.

(continua)

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Sexta-feira, Março 31, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

(continuação)

-E tu? Porque é que encontras tão longe da aldeia?
-Procurava as tuas varas!
-As minhas varas?
-Sim! Vai para uma Fase da Deusa-Lua que a Vidente e a Discípula entraram na aldeia dos Caminhantes e provocaram uma algazarra a exigir que os caminhantes lhes dessem as varas deles. Os mais novos deram logo, mas alguns dos mais velhos recusámo-nos. Ao contrário do que seria habitual não começou histérica e aos gritos, mas murmurou algo à Discípula e saíram as duas. Como aquilo foi tão estranho segui-as e vi que se dirigiam para a aldeia dos Nómadas.
-A da Montanha?
-Não. Têm uma aldeia no terrenos da tribo, espaço conquistado aos caminhantes... - Fez-se um silêncio profundo e triste. -Mas como estava a dizer, - continuou - quando chegaram à aldeia reuniram-nos todos e mandaram-nos para as montanhas procurar as tuas varas. Ela explicou-lhes mais ou menos onde procurar, mas muitos já não se lembram onde é o Grande Vale. A Discípula no entanto lembra-se e eu seguia-a, mas já há dois dias que não tenho nenhuma pista dela. Quando vi as tuas varas ao lado da fogueira pensei que as tinha encontrado...
Fez-se novamente um silêncio. Ambos se olharam, expressões endurecidas pelo tempo. Três Viagens haviam passado desde a última vez que se haviam olhado. Ao se olharem ali, ele com o seu olhar distante e pensativo, ela com um olhar terno e rejubilante, algo parecia acordar de um sono profundo.
-Vai dormir. - disse ele de repente - Acompanho-te ao teu campo para te ajudar a trazer as tuas coisas, mas deixamos a tua fogueira acesa. Quando voltarmos vais dormir enquanto eu monto vigia. Amanhã de manhã partimos para a aldeia.
-Qual?
-Não sei! - respondeu ele com um ar pensativo, mas rapidamente esboçando um sorriso - Vamos tomar a direcção do cume da Montanha, lá em cima logo se vê qual a aldeia. Tudo depende de quantos Nómadas tiverem já desistido da busca.
Com estas palavras levantou-se e dirigiu-se ao campo dela. Quando ela lá chegou já ele trazia todos os seus pertences. No caminho de regresso ela não deixava de se sentir incomodada, como se alguém observasse todos os seus passos, olhos escondidos na noite. Não conseguiu fazer desaparecer essa incómoda sensação e nem a voz calma dele que lhe dizia para dormir enquanto ele vigiava a acalmou.
Viu-o então cruzar as pernas e sentar-se ao lado da fogueira e ficar a olhar para ela. Decidiu então deitar-se e viu-o olhar para cima. Olhou também e viu um corvo sair do alto de um pinheiro e pousar no ombro dele, voltando a levantar vôo após ele sussurrar qualquer coisa que ela não percebera.

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Sábado, Março 18, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

A Montanha! Uma viagem depois de Caladon encontrava-se novamente diante da Montanha. A crer nas memórias que guardava daquela zona, as quais eram já um pouco vagas, encontrava-se a cerca de uma Fase da aldeia dos Caminhantes. Chegaria na fase da Presença, quando a Deusa-Lua brilhasse em todo o seu esplendor e os caçadores estivessem reunidos a festejar. Sorriu ao pensar nos dias de felicidade que com eles passara. Endurecia-se-lhe o rosto ao pensar no que faria dali para a frente. Não que fosse um futuro sombrio aquele que tinha em mente, mas antes pelo facto de o caminho até ele ser tingindo em tons rubros de fogo e sangue. Atirou mais um pau para o fogo e recostou-se a meditar. Fechou os olhos e imaginou a forma das chamas, escutou o vento que soprava manso por cima das árvores e sentiu o aroma doce do fumo encher-lhe as narinas.
Era um aroma a orvalho aquele que o ia tornando progressivamente mais letárgico. Estava já em comunhão com aquela cena calma quando um estalido atrás de si o despertou. Podia ser o sinal de que um animal nocturno se encontrava nas vizinhanças. Tudo estaria bem se o som não se repetisse mais próximo. Tudo estaria bem se não houvesse apenas um animal nocturno que se aproxima do fogo... Levantou-se num repente e num salto colocou-se fora do círculo de luz mortiça que emanava da fogueira, com o seu cajado na mão, pronto a ver quem se dirigia para a sua clareira, sem que esse alguém o visse.
Demorou alguns instantes até que um vulto feminino entrou furtivamente na clareira. Parou e olhou em redor. Não vendo nada de estranho aproximou-se da fogueira e estacou a olhar para as varas que ele deixara ao seu lado. Como que respondendo aos apelos dele, a floresta deixou então que uma aragem entrasse na clareira e avivasse as chamas. A figura feminina assustou-se e deu um salto para trás revelando a sua face à luz trémula e pálida e de repente, ao ver aquela cara, o aroma a orvalho tomou uma forma física e uma memória à muito enterrada veio ao de cima!
- Diz-me sobra da noite: a aprendiza já superou os mestres? - disse enquanto caminhava para o círculo de luz.
Tendo sido apanhada de surpresa, a figura à sua frente colocou-se numa posição defensiva, mas ao reconhecer a voz e o rosto que se apresentavam à sua frente, encheu-se de alegria de rapidamente começou num brado de contentamento.
- Tu... - começou por dizer com a voz trémula - Tu estás vivo! Estás vivo! - e as lágrimas corriam-lhe pela face.
- Pois... Parece que sim! - disse ele e riu-se - Como é que me descobriste?
- Acidente. Nem sabia que eras tu. Estou acampada numa clareira perto daqui e vi o clarão da tua fogueira enquanto procurava qualquer coisa para comer.
- Nestas matas não há nada para comer à noite. Nada que tu queiras comer pelo menos...
- Cheguei aqui ainda não há uma Fase da Deusa-Lua, não me quero comparar com quem está aqui vai para três Viagens.
"Já passou tanto tempo...", pensou ele, deixando que entre eles se intalasse um silêncio pesado.
- Não estive aqui tanto tempo. Cheguei hoje mesmo de... - hesita - muito longe! - completa.
- E para onde vais?
- Não sei. Sinto que devia ir para aldeia dos Caminhantes, ma o tempo que passou é tanto que não sei o que tenho para lhes dar.
- Sabes que há quem sinta a tua falta lá?
- Não, não sei! Estou ausente há muito tempo e só mo disseste agora.
- Tens razão. Mas é verdade, há quem sinta a tua falta e até há quem sinta que fazes falta para lhes dar um rumo. Mesmo quando outrora foram contra isso.
- Houve mesmo quem mudasse?
- Tu não mudaste?
- Porque é que eles mudaram?
- Quem sabe? Eu por mim tenho que foi o tempo. Cresceram e abriram os os olhos e viram de outra forma o que se passou. - ajeitou-se e continuou - Depois do juízo da tribo a Vidente Nómada instalou-se na aldeia dos anciãos, tendo construído a sua cabana, a Cabana dos Nómadas como ela gosta de lhe chamar. Com o tempo ela acabou por se revelar. Cega pelo ódio que te nutre, e que acho que ainda não passou, começou a ver-te em cada vez mais gente, afastando muitos e gerando ódio noutras aldeias. Junto dos Caminhantes são poucos os que se lhe mantêm fiéis e os poucos que o fazem não procuram a companhia do resto da tribo, passam os dias com ela.
- Quem são?
- A Discípula, o Impulsivo e o Passivo.
- E o Obreiro? E a Camaleão?
- O Obreiro é-lhe fiel, o que não quer dizer que se deixe influenciar por ela. De todos é o único em que não arde o fogo da vingança e do ódio. Nos primeiros tempos andou esquisito e ausentava-se muito tempo. Houve quem dissesse que o viam ir e vir na direcção do Grande Vale. Diria mais que ficou magoado e desiludido do que revoltado e odioso. A camaleão ninguém a vê em nenhuma aldeia já lá vão muitas Fases. Há quem a veja perto das aldeias, mas dizer que está numa aldeia é complicado.

(continua)

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Domingo, Fevereiro 26, 2006

Contos do Exílio: O Regresso

LINK EM CIMA -> O regresso

A pedido da totalidade (até ao momento) dos comentadores do último texto, aqui segue a versão compilada do conto "O Regresso" (Ver link acima) tal como se encontra. Qualquer contribuição que achem que o conto mereça, mandem mail que eu dou o NIB da conta onde depositar :P

Se acharem que não merece uns trocados o autor contenta-se com um comentário honesto (não é preciso ser simpático!).

Ah! A continuação continua a ser tratada e não está parada!

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Domingo, Janeiro 29, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

- Discípula! - uma voz grita na escuridão de uma aldeia. - Discípula! Onde estás?
- Chamou Vidente? - responde, num murmúrio, uma segunda voz.
- Chamei.
- Que... - a Vidente faz-lhe um gesto de silêncio. As casas em redor estão vazias, construções de madeira, sem vida nem alegria. Na do meio senta-se a figura escanzelada da Vidente. De pé, à porta da barraca, a Discípula aguarda. Na distância ouve-se o assobiar do vento nas copas dos pinheiros e o roçagar das folhas dos carvalhos.
- Ouves? - perguntou a Vidente.
- O vento? - questionou a Discípula, com um tom de hesitação. Estava certa que era o vento, mas não sabia o que ouvir no vento...
- Sim, o vento! Ouves a mensagem que ele traz? Consegues distinguir o leve assobiar do vento, o que passa por cima da montanha, vindo de onde se apaga o sol, daquele que sobra monte abaixo?
- Não grande Vidente. - murmurou lamuriosa - Lamento mas não consigo... - disse envergonhada a figura magra, que se sentava agora ao lado da velha Vidente.
- Ajuda-me a ir lá para fora... - ordenou a mais velha. A mais nova ajudou-a a levantar-se e a custo e lentamente se dirigiram para o centro da aldeia. Sentaram-se e a mais velha começou, apontando para a encosta à sua frente:
- Vês como os pinheiros se agitam quando uma corrente desce a encosta? Agora pára e ouve... - A outra acenou afirmativamente, mas a velha não reagiu. De repente:
- Vês agora como as árvores estão paradas, mas o vento assobia por cima do monte?
- Oiço... dois sons distintos quando juntos, mas que separados parecem o mesmo. O que quer isto dizer?
- Ele não morreu! - afirmou a Vidente, e abriu os olhos, revelando as órbits brancas, sem nenhum vestígio de sangue. - Ele... não morreu! - Exclamou assustada.
- Quem? - perguntou a Discípula, assustada com as atitudes da Vidente.
- Ele não morreu! Ele vem aí... - insistiu, cada vez mais perturbada, a Vidente. Continuou assim por instantes. Exclamava cada vez frases mais complexas, ignorando os apelos murmurados da Discípula. "Não!" gritava, "Não! Ele não morreu! Ele vem aí, procura vingar-se, procura o que é dele... Não!" gritava agora a plenos pulmões, perante a assustada discípula. Foi então que começou com um guincho, progressivamente mais agudo, até que se calou.
- Vidente... - sussurrou a Discípula.
- Agora não. - interrompeu a Vidente - Arruma tudo. Voltamos à aldeia do caminhantes e voltamos ainda hoje. Temos duas fases para nos prepararmos. Explico-te tudo pelo caminho, mas prepara-te: na fase da Aparição a minha luz irá apagar-se.

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Domingo, Dezembro 04, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, Parte IV: A Última Vela

(No link esta o ultimo texto, sort of...)

(continuação)

No rescaldo da batalha, apenas dois corpos ainda respiravam na clareira. Por muito que procurassem, nenhum dos companheiros conseguia encontrar o corpo do Mestre por entre os cadáveres.
- Levaram-no! - disse o companheiro - Raios! Perdi-os a todos, não fui capaz de defender Caladon, falhei... Tu! Filho da Montanha, não é? - ele deve ter acenado que sim, porque o companheiro continuou - Temos de ir atrás deles!
- Mas como? Durante a noite será impossível seguir-lhes o rasto... - o companheiro preparava-se para responder quando uma voz cavernosa ecoou a partir das sombras:
- Meus caros... Não se preocupem que o velho não está morto. Pelo menos por enquanto! É demasiado valioso, precisam dele para completarem o feitiço que destruirá todo Caladon...
- Tu! - Os olhos do companheiro faíscavam de raiva ao olharem o gnomo que se aproximava lentamente deles. - Que sabes tu, seu vendido?
- Sei como morreram os outros seis guardiões. Sei porque é que eles não o vão matar já. Sei tantas outras coisas que tu não sabes, tantas coisas que te podia contar, entre elas onde podes encontrar o velho e ajudar-te a prevenir que a Última Vela se apague. Claro que tudo isso vos custará mais do que podem pagar... Por outro lado sou um negociador. Estou disposto a oferecer-vos uma resposta. Apenas uma, por isso escolham bem a pergunta!
- Dou-te um pão do velho se nos ajudares a salvá-lo! Sabes como é valioso, e a tua ajuda sempre é mais necessária do que a tua informação. - Disse o Exilado. Face a esta proposta o gnomo arregalou os olhos.
- Dois pães, dás-mos agora e apenas vos conduzo pelo escuro! Caso estejam esquecidos, sou a vossa única hipótese...

Muito custosamente lhe deram os pães, não sem antes o companheiro murmurar qualquer coisa como "corrupto". Caminharam o que faltava da noite até que a aurora surgiu por cima das copas das árvores. "Depressa, estamos quase a chegar e o tempo escasseia" incitou-os os gnomo. Passavam pelas fogueiras da orla da cidadela no coração da floresta quando um raio de sol despontou acima das copas. Imediatamente se levantou um vento muito forte que os projectou a todos para o chão e a escuridão encheu a terra. Quando acordaram, o gnomo, bem como todas as árvores, haviam desaparecido sem deixar rasto. Cerca de cem metros mais à frente apenas uma cabana.

Enquanto avançavam em direcção à cabana e o seu companheiro lhe explicava que era normal um gnomo fugir da luz, um vento levantou-se novamente e à medida que avançavam. Um vento não tão forte como o anterior, mas que bastou para fazer voar a cabana e mostrar o cenário de horror que ela ocultava. No chão repousava um corpo sem cabeça. Ao seu lado a cabeça, e em redor da cabeça seis velas. No cimo do corpo uma vela ardia, quase já sem corpo para arder. Quando chegaram àquele espaço identificaram o corpo como o do velho.
- O Guardião dos Cegos morreu. - disse-lhe o companheiro. - Caladon desapareceu. Não me resta nada aqui. Parto para lá do Reino das Dunas, regresso ao meu povo. Que te disse o vento?
- Quando a última vela de se apagar, há esperança para todos. Quando a última vela se apagar, é tempo de viver. - hesitou um pouco - Só não sei o que significa...
- Creio que sabes muito bem o que significa! - riu-se um pouco - Engraçado... Acho que cada um ouve coisas diferentes! - e dizendo isto partiu, rumo ao sítio onde o nasce o sol, deixando-o ali sozinho.

Meditou um pouco sobre o que aquilo queria dizer. Não havia contado tudo ao companheiro. Não contara os versos "Caminha através das terras e espera até ouvires a canção do feiticeiro. Mesmo que vejas o corvo ao longe e não o vejas cantar a música!". Quando acabou de meditar, um corvo poisou no seu ombro e grasnou. Percebeu o que o vento lhe dissera. Partiu no sentido contrário ao do companheiro, em direcção à montanha, onde tudo começara.

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Quarta-feira, Julho 20, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, Parte IV: A última vela (continuação)

Chegou a noite do dia seguinte e do velho nem sinal. Começou-se então a preparar para partir e assim que pegou na vara, dois vultos atravessaram a orla do clarão da fogueira e sentaram-se junto dela.
- Demoraste demasiado tempo a partir, ó Filho da Montanha! - Era o Mestre que lhe falava. Um dos dois vultos era o do Mestre, mas qual deles? Reparou então que ambos vestiam robes idênticos e apenas os cajados eram diferentes, sendo um deles de madeira clara e o outro de uma madeira escura. O do cajado claro virou-se então para o outro.
- Ó Guardião dos Cegos, tendes a certeza que ele está pronto?
- Tenho. -respondeu a voz do Mestre.
- Mas Guardião dos Cegos, ele parece tão frágil e tão perdido no mundo.
- Já vos esquecestes com quem falais? Já agora, já vos esquecestes de quem falais? - Esta última questão intrigou-o. Tinha a certeza que falavam dele, mas o tom empregue não se ajustava a nada do que vivera.
- Desculpem, mas que conversa é essa? - interrompeu.
- Filho da Montanha... Há tanto para saberes que te peço: senta-te connosco aqui junto ao fogo. Pela manhã partimos para o bosque de Caladon e queremos que nos acompanhes.
- Porque havia de vos acompanhar?
- Porque Caladon, fica longe de tudo o que conheces, apesar de estares relacionado com ele... - suspirou o Mestre - Mas senta-te aqui e ouve o que tenho para te contar.

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Não acabou de lhe contar a história naquela noite. Na realidade, muitas noites se passaram antes que chegassem ao velho bosque e a história terminasse. A história de como num bosque ardiam sete velas, cada uma representando um dos guardiões da floresta, a história do porque é que hoje só ardia uma delas, a do Guardião dos Cegos, o povo que vivia no coração da floresta, a zona mais escura e onde o mal, até recentemente, não ousara nunca entrar. Ao fim e ao cabo, a história do velho a quem ele chamava Mestre, a história do tempo que o Mestre procurara uma criança há muito desaparecida. Ele! O Exilado!
Em tempos idos, habitava no coração da floresta um feiticeiro que tinha um filho. No dia em que, pela última vez, o feiticeiro gritou de dor, a criança transformou-se em pedra. Os sete guardiães partiram com essa estátua para a mais alta das montanhas que conheciam. Uma vez lá chegados, soprou um vento terrível, que por entre fragas assobiava melodias proféticas sobre Caladon. Rezavam os ventos notícias de como gnomes e elfos devastavam Caladon, apenas poupando as zonas escuras, que eram assolaas pela fúria devastadora dos orcs, que armadilhavam os caminhos e incendiavam a floresta.
Dos sete guardiães, seis regressaram a cantar aquele que ficou conhecido como o Cântico do Vento, mas o Guardião dos Cegos ficou e tomou conta da estátua, até ao dia em que esta desapareceu.
- Um dia mais tarde passei pela aldeia dos Caminhantes. Contaram-me tudo sobre o que se passara e que culminara no exílio de um deles e numa luta interna na tribo, após a qual os Caçadores abandonaram a vida da aldeia. Desde a noite em que te encontrei até hoje é uma história que já conheces.

Estavam acampados na orla de Caladon, planeando como furar através das linhas de terror escarlate que se viam ao longe, bem dentro da muralha verde. Só ali culminara a história e encontravam-se a comer tranquilamente do pão que o velho tinha e que parecia não acabar! Quando mais tarde se preparavam para dormir, um grunhido próximo deles alertou-os.
O Mestre levantou-se segurando a vara na mão e começou a entoar um lamento, soprando como o vento nas copas das árvores e em simultâneo, como o zéfiro que bate nas fragas da encosta de uma montanha. O seu companheiro exclamou "A Canção do Ancião" e ele reconheceu-a, pois lá no fundo da sua alma aqueles suspiros e uivos eram-lhe familiares e sentia-se inquebrável ao entoar mentalmente aquela ladaínha. Subitamente uma horda de orcs surgiu da floresta. Mal tiveram tempo de se levantar e pegar nas varas, enquanto o Mestre atingia um orc violentamente na cabeça e partia a perna a outro. Assim que se pôs de pé, o Exilado entrou também em acção, servindo-se da hesitação dos orcs perante o ímpeto do Mestre. Rodopiando a vara acima da cabeça rachou o crâneo a pelo menos seis orcs. Graças ao treino do Mestre conseguia antever os movimentos dos inimigos e a escuridão não o incomodava, mas ali os inimigos pareciam uma avalanche que se abatera sobre eles, era impossível vencê-los a todos, morreriam ali, a lutar heroicamente! Quando o seu corpo começava a acusar o cansaço e o cheiro a sangue de orc lhe provocava vómitos, um urro ecoou na clareira e todos os orcs bateram em retirada.

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Domingo, Julho 17, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, parte IV: A última vela.

Estava novamente sozinho. Olhava em seu redor e ainda não acreditava que estava outra vez sozinho. Vinha-lhe à cabeça a noite em que conhecera o velho e via nessa nopite muitas semelhanças com aquela. Noite escura e pesada, como se fosse uma treva eterna, o cheiro a pinho queimado a perfumar o ar e a única luz e cor provinha da tremeluzente chama da fogueira.

Ali no chão, ao lado da fogueira, repousavam as mesmas varas que o Mestre correra mundo para lhe dar. As varas que outrora haviam sido dele e que regressavam agora às mãos do seu dono. Faltava só o cajado do velho... Faltava-lhe tudo o que o Mestre simbolizava.

"Não sejas para o teu povo o que eu fui para o meu: a última vela a apagar-se..." Essa frase remoía-lhe a alma. Tanta coisa mudara, mas o desejo de vingança tomava agora uma outra dimensão. Não procurava vingar o mal que lhe fizeram, procurava sim mostrar que o Mestre estava correcto, procurava não destruir os outros, mas antes mostrar-lhes que estavam errados... O que para eles era pior do que serem destruídos!

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Treinaram durante três meses. Nos dois primeiros apurou os sentidos de uma forma que nunca o havia feito. No primeiro dos dois meses nunca viu a luz do sol, devido à venda que o Mestre lhe colocou. Teve de caçar, identificar árvores e plantas, sem que nunca a pudesse tirar e de noite ainda tinha de realizar percursos na floresta. Aliás, todas as deslocações que efectuavam, efectuavam-nas apena de noite, ele com o Mestre às costas, enquanto que este dormia pesadamente. No segundo mês apurou apenas a visão, de tal forma o fazendo que conseguia distinguir o suave movimento dos pêlos no braço do Mestre, quando à noite se sentavam à fogueira.

O terceiro mês foi de todos o mais exigente, uma vez que o Mestre o iniciou no treino da luta com vara. Ao ver a sua vara de guerreiro, um ramo de eucalipto forte e robusto, seco e endurecido pelo tempo e pelo fogo, sentiu um formigueiro nas mãos e lembrava-se dos duelos que outrora fizera. O Mestre contudo, trazia também a sua vara de Caminhante, uma vara bifurcada, pouco maior que ele e que havia sido toda ela trabalhada. "Tomei a liberdade de esculpir nela a tua história", disse-lhe o velho com um olhar terno e meigo, "Mas deixei a bifurcação para ti. Afinal, daqui para a frente a escolha é tua..." acrescentou. Na manhã seguinte começaram a treinar movimentos de combate. Apesar de se lembrar dos movimentos, os seus músculos encontravam-se demasiado entorpecidos, pelo que levou toda a manhã para readquirir toda a destreza e coordenação necessárias, tendo na parte da tarde treinado movimentos avançados, tais como defesas e ataques com uma mão. No dia seguinte o Mestre desafiou-o para um duelo e só então percebeu que o cajado do velho era sim um bastão de duelo, à semelhança da sua vara, endurecido pelo tempo e pelo fogo. O duelo durou o dia todo, pois o Mestre apenas o considerava acabado quando um dos dois caísse inconsciente no chão. O Mestre movia-se graciosamente, parecendo leve como uma pena ao vento, e batia com a força de um urso. A meio da tarde, já com um dedo inchado e um enorme alto na testa, vencido pela dor e pelo cansaço, caíu.

Sentiu o sol quente a bater-lhe na face e acordou. Era a manhã que se erguia e o corpo dele já não apresentava nenhuma das mazelas com que havia desfalecido. Não havia mais ninguém no campo, pelo que teve tempo para repousar. Quando o sol já se punha, apareceu o Mestre, que apenas pronunciou as palavras "Recomeçamos agora." e prontamente o atacou. Não evitando a surpresa, não conseguiu evitar ser zurzido com violência na cabeça e, tonto, limitou-se a defender nos primeiros instantes. Ao recuperar o discernimento apercebeu-se de uma certa cadência repetitiva nos movimentos do Mestre e deciciu passar ao ataque. na sua primeira investida, uma esquiva lateral, seguida de ataque às pernas, quase conseguiu acertar, mas no último instante o Mestre saltou por cima dele e atingiu-o violentamente nas costas.

- Paramos por agora. - pronunciou, enquanto ele procurava levantar-se. - Fazes progressos notáveis, mas algo me apoquenta agora. - olhou em redor e depois continuou - Vou ausentar-me por uns instantes, se não estiver de volta até ao pôr-do-sol de amanhã, dirige-te para longe da montanha, levando tudo contigo. Se em alguma altura não souberes para onde ir, procura uma árvore e segue o lado sem musgo. - Dizendo isto partiu, sem lhe permitir qualquer pergunta. Assim que o velho desapareceu atrás da folhagem, um corvo aterrou junto à fogueira e grasnou ruidosamente. Pelo menos não estava sozinho!

(continua)

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Sábado, Março 19, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, parte III: O Mestre (conclusao)

- Essa missão tu vais aceitá-la, sabe-lo bem! - respondeu o Mestre, olhando-o directamente nos olhos, transbordando calma - Vais aceitá-la porque se não tivesses esperança de que surgisse tal oportunidade, já te tinhas matado ou deixado morrer há muito tempo.

- Que sabes tu de mim para afirmares tal coisa? - contrapôs ele agressivamente.

- O suficiente... Sei donde vens, algo que tu não sabes, e sei qual o teu destino, algo de que foges e te recusas a ver...

- Como posso ver o que não se vê?

- Limita-te a acreditar! - exclamou o Mestre - Todo este tempo te remoeste com pensamentos de culpa e vingança, só nunca acreditaste realmente nessa vingança que te consumia por dentro. - Fez uma pausa e continuou. - Alguma vez paraste e refletiste sobre a forma como concretizarás a tua vingança?

- Sim... - E um brilho de maldade e raiva encheu-lhe os olhos - Muitas noites sohei com que lhe faria quando a reecontrasse...

- Não! Não te pergunto o que lhe farias, mas sim como te encontrarias com ela... - levantou-se num repente e apontou uma montanha no horizonte - Vim ontem daquela montanha. Por trás dela o Sol irá deitar-se hoje e por trás dela repousa o Clã dos Caminhantes. - Os olhos do Exilado brilharam de entusiasmo à menção do seu Clã. - Quando nós repousarmos debaixo do olhar atento da Deusa-Lua, na tenda dos anciãos a Vidente preparará o futuro da tribo, o futura em que a Discípula comandará a tribo! Queres realmente isso?

Ele não respondeu. Sentia arde em si um fogo invisível. Sentia as pernas a retesarem-se e os punhos a cerrarem-se, salivava sem cessar e a lembrança dos nomes das responsáveis pelo seu Exílio despertavam nele o que de pior o seu ser tinha.

- Exilado! - Gritou o Mestre, pegando no cajado que repousara até então ao seu lado. - Exilado, acorda da Fúria!

Só então se apercebeu que cerrara os punhos com tanta força que havia cravado as unhas na sua própria carne.

- Desculpa... Não me consegui controlar quando referiste...

- ... Eu sei! - interrompeu o Mestre. - Não o devia ter feito, mas não pensei que a Fúria estivesse ainda tão desperta em ti.

- A Fúria?! - perguntou o Exilado, espantado com tudo o que o Mestre dizia.

- O feitiço que a Vidente te lançou. Levou-lhe uma Viagem a urdi-lo e quando finalmente o deu por terminado, na primeira noite que passaram no Grande Vale, deixaste de responder por ti. Passaste nessa noite a agir em conformidade com os desejos dela e ela incutiu em ti o espírito do Lobo. Podes não o saber, mas tu não nasceste com o espírito do lobo...

- Com que espírito nasci então? - interrompeu ele.

- Não interessa! Nos dias de hoje respondes só pelo Lobo. Esse espírito foi-te dado para que tu a odiasses a ela e à sua astúcia de raposa...

- Como se contraria esse ódio? Voltando ao espírito antigo?

- Estou aqui para te ajudar a recuperares o espírito do Morcego, o caçador das trevas, que sem ver alcança sempre a sua presa, que fazendo barulho ninguém o ouve.

- E como é que isso me ajuda a regressar à tribo?

- Uma coisa não invalida a outra! Arrisco mesmo dizer-te que sem o teu espírito não passas de mais um dos seus instrumentos dela; com o teu espírito tornas-te um lutador e será tua a vontade de ocupares o teu lugar dentro do teu Clã!

Fez-se um silêncio pesado, apenas se ouvindo esporadiacamente o crepitar do fogo elevar-se acima da respiração pesada de ambos.

- E se eu quiser ficar com o espírito do Lobo?

- Estás sempre sujeito à Fúria. Momentos em que te tornas incontrolável, em que perdes a noção de onde estás e o que és; apenas a morte, o sangue e o saciar a fome interessam nesse instante. Será a primeira fraqueza que ela vai explorar. Sentes-te mesmo capaz de mudar a esse ponto e correr esse risco?

- Sinto! Na prática já não sou o que era antigamente. Teria de renascer para que me tornasse no que era. Mais vale trabalhar aquilo que me tornei e descobrir as minhas falhas, para que ela não se valha delas.

- Tens então de escolher quem serás daqui para a frente.

- Corrige-me as falhas e torna-me no Homem-Lobo!

FIM do capítulo III

Próximo Capítulo: A última vela (Homenagem a Blind Guardian)

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Segunda-feira, Março 07, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, parte III: O Mestre (cont.)

Ficou então sozinho com a sua refeição. Enquanto tomava a sua refeição, sentia que o mundo era agora um sítio diferente. Os pássaros cantavam nas árvores, o orvalho que pingava não era mais uma forma de saciar a sede, mas também uma forma de refrescar o rosto pela manhã. Encontrava-se entregue a um sentimento de espanto quando o velho regressou. Pela primeira vez apercebeu-se da real estatura do velho. Não era muito alto, talvez pouco mais alto que os seus ombros, tinha os cabelos lisos e estranhamente curtos e brancos como neve. A sua cabeça era redonda e os olhos pequeninos mal se viam, por se encontrarem sempre semi-cerrados. Possuia ainda uma longa e estreita barba branca, que lhe tocava o meio do peito.

- Não sei se já me apresentei. - começou por dizer - O meu nome é Mestre. Assim como tu foste um dia baptizado Exilado e outros que conheceste com os seus, assim eu recebi este nome. - Sentou-se ao lado dele e ateou o lume. - Vês esta fogueira? Ontem ardia de tal maneira que parecia ter nela todo o calor do mundo. Hoje, quando acordaste, estava morta, fumegando e pouco mais, no entanto agora voltou a pegar fogo e se a alimentarmos tornar-se-á um clarão a irradiar energia e calor. - Fez uma pausa para colocar mais uma acha na fogueira. Olhou para ele com os olhos suficientemente abertos para ele se aperceber do seu negrume, e disse então: - Assim é também a vida do Homem! - e os seus olhos faíscaram!

- O que é que isso tem a ver com o tu estares aqui? Como é que isso se relaciona comigo?

- Meu caro... - hesitou - Na verdade, tem tudo a ver contigo! - sorriu - Quando nascemos todos nós temos uma missão e todos os nossos passos nos conduzem para o momento em que vamos ser chamados a realizá-la. Não importa os empurrões que nos dão ou o quanto fugimos dela, invariavelmente acabamos por ter de optar entre cumpri-la ou não a cumprir. A minha missão é estar aqui, agora, contigo. A tua... revelá-la-ei mais tarde, porque só a ti te cumpre realizá-la ou não!... - dizendo isto calou-se e ficou à espera, perscutando-o com aquele olhar escuro e profundo.

- Mestre, - começou o Exilado - tudo o que dizes é muito bonito. De certa forma lembra-me a minha vida passada. - hesitou - Mas essa já passou! Com ela muita dor, muita revolta, muito sofrimento... - Ia acrescentar muitas pessoas, mas não foi capaz. - A tua preença faz com que as memórias do passado não despertem em mim uma fúria selvagem, nem causam a amargura das noites de luar. Assim é a tua missão porventura fazer-me esquecer tudo isso e devolver-me a minha humanidade?

- A tua humanidade já te foi devolvida. No momento em que abriste a boca e dela saíram palavras, aí recuperaste a tua humanidade! - Pareceu dizer a frase colocando um particular ênfase em "tu" e "tua". - A minha missão, Filho da Montanha, é fazer com que não esqueças nunca as amarguras da vida pelas quais passaste. A minha missão é fazer com que retornes ao teu clã e assumas o teu lugar como orientador da próxima geração de Caminhantes!

- Essa missão eu recuso-a! - interrompeu ele, num grito e com os olhos a arderem furiosamente.

(continua)

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Sexta-feira, Fevereiro 04, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, parte III: O Mestre

Dormiu descansado pela primeira vez, no que parecia já um eternidade. Quando acordou já o Sol ia bem alto e o orvalho havia secado na plantas em seu redor, algo novo para ele. Não se lembrava de nenhum sonho. Nada! Não havia nele sequer os habituais desejos animalescos de caça, como se o simples acto de comer um pão e de dormir junto a uma fogueira houvessem despertado nele uma humanidade hibernante.
Levantou-se e descobriu, para lá do monte de cinzas que era agora a fogueira, o velho que na noite anterior o acolhera. Aí se encontrava, imóvel, sereno, sem esboçar qualquer sinal de vida, como se de uma estátua de bronze se tratasse. No seu ombro esquerdo repousava, altivo, um falcão e junto aos seus pés um corvo debicava o que parecia ser os restos de pão da noite anterior.
-Bons dias Exilado! - saudou-o o velho, sem pestanejar sequer, permanecendo imóvel. -Creio que tens muitas perguntas para fazer e eu tenho muitas respostas para te dar.
-Bom dia... Como te chamas? Quem és tu? - perguntou, ainda meio atordoado pela situação, mas com um sentimento de segurança. Sentia-se estranhamente seguro junto àquele desconhecido, que pretendia conhecer a curto prazo.
-Penso que estarás mais receptivo a respostas após uma boa refeição. Toma, come! - disse retirando de um bornal um pão, em tudo idêntico ao da noite anterior, e um cantil. - Se tiveres sede podes beber do cantil. Tem uma bebida revigorante que faço para mim, mas pareces necessitar mais dela do que eu.
-Como sabes as minhas necessidades? Como sabes quem eu sou?
-Come descansado, com o tempo saberás as respostas, porque com o tempo eu tas direi. Por agora - e levanta-se num repente, apenas se servindo das pernas, num gesto que revelou bastante agilidade - vou devolver os meus amigos à sua vida normal. Volto já.
Dirigiu-se então à clareira, o corvo e o falcão esvoaçando atrás dele, não se importando, ou figindo não se importar, com aquele ser que deixava especado a olhar para ele.

(continua)

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Quinta-feira, Dezembro 02, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, parte II: Encontro (cont.)

Exilado... Vêm-lhe à cabeça imagens de uma aldeia, um grupo de adultos a olhar para ele, um grupo de crianças na brincadeira, uma caçada na floresta! Exilado... A palavra faz badalar um sino na sua cabeça, acorda nele a memória do antigamente, memória essa que lhe refresca a alma como se da brisa do mar, na orla do Grande Mar se tratasse!

-Levanta-te Filho da Montanha! Aqueles que um dia chamaste pais esquecem-se de ti, a cada dia que passa e tu, preso neste teu exílio do mundo, acentuas o esquecimento, esqueces-te de quem és, de quem foste e de quem tens de ser! Levanta-te que não és nenhuma criatura da floresta, não te vergues como elas se vergam perante ti.

Toda e cada palavra que o velho pronunciava, despertavam-no para a sua humanidade. Sentia-se agora como não se sentia havia já muitas Viagens... Sentia-se um Homem Novo, sentia que tinha acabado de nascer só que o mundo lá fora não era estranho, só os sentimentos! Levantou-se e caminhou em direcção ao velho, que entretanto não mexera mais nenhum músculo para além dos necessários para levantar levemente um dos cantos da boca, gesto que lhe acentuava as muitas rugas do rosto.

-Tenho fome... Tenho sede... - balbuciou, a sua voz entaramelada dada as poucas palavras que havia pronunciado desde que chegara à floresta. Parecia-lhe que era a primeira vez, desde sempre, que se dirigia a alguém. Não andava longe desta realidade uma vez que essa última vez havia já sido apagada da sua memória e certamente não lhe havia transmitido a satisfação que este encontro lhe trazia.

-Acredito, Filho da Montanha, Exilado do teu povo, Vítima Injustiçada. Senta-te comigo junto do fogo, trouxe-te comida e vestes. - dizendo isto sentou-se. O Exilado sentou-se ao seu lado. Sentia agora na face o ar quente que emanava da fogueira. Comeu do pão que o velho trazia, saciando-se como se de um animal de grande porte se tratasse. De seguida bebeu do cantil do velho, que lhe assegurava que era água, no entanto não havia água em toda a floresta que fosse tão refrescante e que mais do que saciar a sede, aliviava os pensamentos e parecia limpá-lo por dentro. Quando acabou o velho ordenou-lhe que dormisse ali no chão, junto à fogueira. "A manhã traz consigo um novo dia. Que estejas recuperado para o enfrentares e à tua nova vida."

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Terça-feira, Novembro 23, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, Parte II: Encontro

Aquela floresta era-lhe tão familiar como se parte integrante de si mesmo, um mero prolongamento do seu ser. Cada galho, cada raíz eram-lhe tão familiares como se fossem os seus dedos e as suas mãos. Conhecia cada árvore como os seus próprios braços, o ribeiro saudava-o todas as manhãs e as grutas abriam-se ao pôr-do-sol, para que nelas repousasse em paz. Apesar de tudo isso, neste momento caminhava hesitante!...

Era um sentimento novo e estranho. Ele, que se tornara parte das lendas sobre seres fantásticos e tenebrosos, caminhava hesitante. Ele que combatera alcateias de lobos e era visto como devorador de Homem e Animal, estava agora no lugar da presa, caminhando hesitante e receoso, rumo a uma chama que ardia tão longe e no entanto tão perto. Cada vez mais perto...

Subitamente uma forte lufada de ar da noite tapou-lhe a vista com os seus próprios cabelos desgrenhados. O seu instinto de caçador fê-lo correr para a sua esquerda e agachar-se na erva alta que aí brotava. Havia decidido avançar sobre a fogueira pelo lado contrário àquele em que antes de encontrara, de modo a evitar que o vento levasse o seu cheiro até quem quer que estivesse junto da fogueira. Colado ao chão começou então a rastejar. Quando finalmente se encontrava ao alcance da vista de quem quer que estivesse junto da fogueira, reparou que apenas um velho se sentava, de costas voltadas para ele, junto ao lume onde assava um pequeno animal. Atrás dele, pousados no chão, repousavam dois cajados e ao seu lado havia uma pequena trouxa, que mais não parecia do que um amontoado de trapos...

A Fome!... Esse sentimento escondido, esse desejo de pão, essa vontade de pegar numa vara, essa sensação que lhe acelera a pulsação, lhe retesa os músculos, que o isola de todo o mundo, menos daquele que os seus olhos conseguem captar. Já há muitas Viagens que não a sentia vibrar em si, mas a vista dos cajados acordou esse sentimento escondido nos recantos do seu ser onde a humanidade hibernava.

Imagens de uma vara partida, um grupo com tochas, um guerreiro vestido de verde, memórias passadas e imagens futuras, tudo lhe atravessava a mente enquanto contemplava o velho, que se encontrava agora de pé e a olhar atentamente para o local em que se encontrava.

-Levanta-te ó Exilado! O teu futuro começa hoje e não lhe poderás escapar! - a voz do velho ressoou pelas copas das árvores. Era uma voz cavernosa e ninguém diria que um velho de aspecto tão frágil seria capaz de fazer vibrar o meio em seu redor daquela forma. Aquelas palavras gelaram-lhe o sangue. Gelava-o não tanto a forma como haviam sido ditas, mas sim pelo que diziam e pelo que significavam. Aquele velho sabia onde ele estava! O velho revelara saber ainda algo mais, revelara que a sua humanidade perdida, não lhe era de todo desconhecida!
(continua)

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