Diário de um homem morto - Desejo
Era um pouco triste ao que tinha descido. Especado, à chuva, em frente à porta do bar, hesitava. Tinha sido um colega do escritório, a recomenda-lo. “É o sítio ideal para o engate, todos sabem ao que vão! Já lá fui diversas vezes, e nunca saí sozinho!!”, dissera. Durante alguns dias recusei-me, indignado, a aceitar a sugestão. Mas ultimamente o desejo tinha-me corroído a um ponto quase insustentável, desgastando-me, e quanto mais lutava para resistir, mais cedia terreno nessa luta. Até que uma sexta feira, ao acordar, a batalha estava definitivamente perdida. “Hoje depois do jantar vou lá. Um copo nunca fez mal a ninguém”, pensei, tentando desculpar a minha fraqueza. Suspirei, mas não vacilando, entrei.
Á primeira vista o bar parecia-se com qualquer outro. Uma música ambiente bastante agradável, uma decoração pós-moderna não muito agressiva, poltronas em tons avermelhado-escuro, com bastantes mesitas de apoio, e 2 juke-box em cada uma das duas divisões, que ainda funcionavam mesmo com moedas. Estava bastante cheio, e alguns grupinhos, sobretudo pares, bem como pessoas aparentemente sozinhas, bebiam ou dançavam. Dirigi-me timidamente ao balcão, e sentei-me num dos bancos altos metálicos, com apoio de pés. Com uma tentativa de aceno decidido chamei a atenção do barman, que se aproximou.
- Hum... um Jack Daniels com gelo por favor – pedi
- É para já! – disse, agarrando quase imediatamente com as suas mãos treinadas a garrafa laranja, servindo-me em menos de um minuto a minha bebida – Aqui está.
Dei alguns goles na bebida, sentindo o seu calor dentro de mim. Fui observando o movimento, ambientando-me cada vez mais ao bar à medida que pedia mais um copo. Não estava habituado a beber, e notei-o quando uma mulher se sentou num dos extremos do balcão. Eu, geralmente tímido, comecei a fixar o olhar na sua direcção. Uma figura esguia, de cabelo ruivo e curto, olhos grandes pintados com sombras negras, era o tipo de mulher que despertava em mim uma atração quase instantânea. Pediu também uma bebida, e ao fim de pouco tempo reparou que eu a observava. Durante alguns momentos os nossos olhares foram-se encontrando, até que uma sensação mútua de desejo me fez avançar. Fechei os olhos, acabando de um golo com o uísque e preparando-me para levantar. Quando os abri, verifiquei que ela se tinha antecipado, estando já ao meu lado, em pé.
- Posso? – perguntou-me, fazendo o gesto de se sentar no banco vazio a meu lado, ao que eu anuí imediatamente. Conversámos, e a imagem do seu corpo foi enchendo a minha mente com idéias nascidas do puro desejo. Comecei a tocá-la ocasionalmente, por entre gestos, na perna ou no braço, e notei que cada vez que o fazia ela parecia estremecer ligeiramente. Uma hora volvida, completamente enlevado pela sua aura provocante, decidi arriscar.
- Estava a apetecer-me uma bebida num local mais... íntimo. Que achas? – o meu coração batia descontroladamente, mas não acalmou com a sua resposta, oferecendo a sua casa para essa “bebida” íntima. Saímos os dois, deixando para trás os rituais de acasalamento modernos que se davam pelo bar. Seguimos no carro dela, um Colt vermelho, e meia dúzia de quilómetros mais à frente, parámos. O desejo entre ambos não parava de aumentar, e quase corremos pelas escadas cima até ao 3º andar. Num rompante, abrimos a porta, e ela quase me arrancou a roupa. Beijámo-nos, e os seus lábios pareciam fogo. As minhas mãos começaram a percorrer-lhe o corpo, e quando comecei acariciar-lhe o peito, ela afastou-me, e começou lentamente a despir-se na penumbra da sala. Peça a peça, a sua pele branca foi surgindo, até que, completamente nua, se virou e foi para o quarto. Eu segui-a, despindo-me, e quando entrei ela estava perto da cama, a personificação da tentação em frente dos meus olhos. Agarrei-a, beijei-a intensamente, e empurrei-a com alguma brusquidão para a cama.
Peguei firmemente na sua perna, e comecei a mordiscá-la subindo pouco a pouco, cada vez com mais força Ela estremecia. Enquanto a beijava entre as coxas, não se controlava, agarrando-me no cabelo e gemendo de prazer. Um fogo interior consumia-me, e eu tratava de o tentar apagar, alimentando-me insanamente com o seu corpo. Peguei no pescoço bem delineado, e virei-a contra a parede, possuindo-a com tanto ardor como violência. Ela gritava bem alto, numa mescla de êxtase e dor. O seu corpo suado reflectia a pouca luz existente enquanto eu o percorria, uma e outra vez, à medida que a minha paixão hipnotizante se ia consumindo, lentamente. A sua respiração alternava entre um arfar rouco e um gemer doloroso, sentindo-me cada vez que a tinha como se fosse uma primeira vez, e não como mais uma, numa espiral que parecia não ter fim.
Extenuados, finalmente voltámos a cair na cama. Fumei um cigarro, clichê recorrente, e tentei acalmar a pulsação. Sentia-me como um viajante que, a meio de uma travessia no deserto, alcança um oásis e se satisfaz impetuosamente, sabendo que ainda falta muito mais areia e sol para acabar a viagem. Ela estava deitada de lado, e o cansaço tinha levado a melhor, visto já dormir profundamente. Acabei com longas baforadas o calmante, e levantei-me, ainda nu. Dirigi-me à janela, e enquanto olhava para a rua, ouvi barulho na outra divisão. Virei-me, e a porta abriu. Um homem furioso que eu reconheci estava pregado junto à entrada do quarto. Desatou a berrar, e a minha companheira acordou, primeiro surpresa, depois em pânico, e começou a gaguejar que era suposto ele estar no Porto. Atónito, não queria acreditar que tinha acabado de ter relações com a mulher do amigo que me tinha aconselhado o maldito bar!
Completamente tresloucado, o marido ultrajado saiu por breves momentos, deixando-me a olhar vitrificado para a mulher chorosa, na cama. O desejo que tinha sentido por ela há umas horas tinha-se convertido em repulsa. Ele voltou com uma faca na mão, decidido a acabar comigo e a recuperar a sua honra. Saltou para cima de mim, e rebolámos no chão, lutando pela vida. Consegui segurar-lhe a mão, e torcendo-a fiz com que a faca caísse. Esmurrei-o violentamente, até que ele se esquivou, ensaguentado, e se levantou. Rapidamente mandou-me um pontapé no queixo, e, ao cair junto da faca, peguei nela e num ápice apunhalei-o. O corpo escorregou para o chão, enquanto me sentava, arfando, sabendo que tinha morto para não o ser eu. Subitamente um berro rasgou novamente a escuridão do quarto, vindo com ele uma pancada forte metálica na minha nuca, a primeira das muitas que me reduziram o crânio a uma massa informe. A mulher vingara-se do assassino do marido.
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