Domingo, Outubro 02, 2005

Diário de um homem morto - Uma última bebida

Ainda antes do cano frio se encostar à minha nuca já eu adivinhara a sua presença. Calmamente dei uma última baforada no cigarro, expelindo languidamente o fumo numa nuvem cinzenta que se desvaneceu no ar. Atirei a beata para longe.
- Sempre me encontraste... não que alguma vez tenha duvidado disso! – disse, cruzando as pernas – Sempre o soube, apenas esperei que fosse mais... tarde - A sombra respondeu, ameaçadoramente, com um clique da arma.
- Calma, calma, não é preciso ter pressa, o destino espera sempre mais um pouco.Que ameaça posso eu ser para ti? – disse, abanando a cabeça e sentindo ainda a impressão metálica redonda na cabeça - Porque não uma última bebida, entre dois velhos... conhecidos? – propus. Senti o seu hesitar, um instante que reflectia uma breve, mas intensa, decisão. Finalmente, a pressão aligeirou-se e a arma foi baixa, com um clique inverso ao anterior.

- Óptimo. Penso ainda me lembrar da tua bebida preferida... Gin com muito gelo e um pouco de sal, certo? – o vulto aquiesceu com um ligeiro “hum” nervoso – Uma bebida tão fora do comum não se esquece facilmente. Para mim apenas o velho e vulgar “escocês” com duas pedras. – disse, permitindo-me um sorriso enquanto me dirigia para o bar da sala, onde comecei habilmente a preparar as bebidas. O vulto parecia permanecer imóvel nas sombras. Acabei, e com uma mão estendi-lhe o copo, ao mesmo tempo em que dava um golo no meu e me encostava no sofá, em pé.

- Então, que tal? Não está bom? – perguntei, observando a hesitação do meu oponente, que observava o copo sem se decidir a leva-lo à boca.
- Bebe tu primeiro – disse ela, ouvindo-se pela primeira vez no escritório a sua voz melódica, mas rouca.
- Ah, desconfiada como sempre. Pensas que deitei alguma coisa na bebida? – atirei notoriamente surpreendido – Tudo bem, eu provo primeiro... em situações normais esse sal podia fazer-me mal à tensão, mas na presente situação não me parece que o meu médico se vá aborrecer – dei um gole, soltando antes uma sonora gargalhada, e estendi novamente o copo à minha assassina, depois de alguns segundos – Como vês, ainda não estrebucho. Força, bebe à vontade. – e ela bebeu, agora mais descansada, mas sempre com a mão tensa sobre a arma.

- Sabes que esta bebida apenas te deu mais uns breves batimentos desse reles coração, não sabes? – disse ela. Com um vestido longo e preto, os seus olhos faiscavam ódio – O que ansiei por este momento!!
- Também eu ansiei... por te ver. Mesmo sabendo que isso significaria a minha morte. Sempre foste tudo para mim... – a minha adversária pareceu tremer - Mas a vingança e o ciúme falaram mais alto na altura. Ele roubou-te de mim! Eras minha, não tinha o direito! – o longo e delgado braço começou, tremendo, a levantar a arma – E que gozo me deu matá-lo! Guinchou e implorou, enquanto eu punha dolorosamente fim à sua vida! Ah! – a arma apontava agora na minha direcção, pronta a atirar, mas tremia violentamente. – Não te merecia, não era digno de te tocar nem com um dedo!! – O braço parou repentinamente, tal como o corpo, que caiu redondo no chão, completamente hirto. Apenas os seus olhos brilhantes se mexiam em pânico. Aproximei-me.

- Não tenhas medo, é apenas veneno de víbora australiana. Um paralisante poderoso, mortal apenas se eu não te der o antídoto – expliquei, cuidadosamente, fazendo uma festa na sua cabeça, como faria a uma menina. Os seus olhos espantados olhavam para o copo tombado – Sabes, apenas um gole de veneno não é suficiente para alguém que foi ganhando anticorpos como eu através de pequenas doses diárias. – tirei uma pequena seringa do bolso, e injectei o seu conteúdo no braço da mulher que estava estendida no chão. – Pronto, um antivírus produzido por anticorpos de cão. O melhor amigo do homem em todo o seu esplendor – ri-me, agora nervosamente - Daqui a uma hora estás como nova. Achas realmente que eu alguma vez seria capaz de matar a minha própria... filha? – uma lágrima correu pela minha face, enquanto dava um último, terno e muito esperado beijo na sua face

– Poupo-te o trabalho, pela segunda vez. Ninguém vai ouvir nada, o edifício está vazio. As câmaras estão desligadas. Quando te conseguires mexer levanta-te, limpa o copo e sai. – disse, enquanto pegava na arma, ainda presa na mão da minha filha. Levantei-me, limpei com um lenço a pistola enquanto me dirigia para o outro lado do escritório, e fiquei a olha-la, melancolicamente – O que fiz foi por amor... Tal como agora – Com um gesto brusco encostei o cano frio na testa e disparei.

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