Quinta-feira, Novembro 13, 2003

SOCIEDADE

-Temos aqui um caso bicudo senhor?...
-Tungsténio.
-Pois. Tungsténio, claro está... O seu caso é deveras... Digamos que... Pois!
A sala parecia enorme. As paredes todas pintadas de branco conferiam àquela sala uma noção de infinito. As paredes pálidas de medo, o céu cheio de nuvens brancas e o chão cor de neve virgem. Parecia que estava a flutuar. Só a mesa preta o devolvia à realidade. A mesa e quem se sentava por detrás dela.
-Senhor Tungsténio, o senhor conhece bem a nossa sociedade não conhece?
-Conheço sim. Senhor?...
-Eu faço as perguntas está bem? – respondeu com um sorriso sarcástico.
-Sim senhor.
-Ora bem, onde é que nós íamos...Pois exacto! O senhor está consciente das regras da sociedade. Conhece as leis, sabe o que se pode e o que não se pode fazer. No entanto foi apanhado na via pública a ler uma dessas armas subversivas a que os antigos chamavam de livros. O que tem a dizer em sua defesa?
-Que um livro está longe de ser algo subversivo.
-Perdoe-me, mas isso é algo que não abona em sua defesa. Até ao momento você já violou várias leis, algumas de grande gravidade. Senão vejamos: possuir papel e canetas em casa, possuir livros, recusar-se a ler na Grande Rede Unificada Para Entretenimento Social as grandes obras, dos grande autores, nomeadamente os ensaios do nosso líder, o grande Hidrogenus... Quer que continue?
-Quer que lhe responda? – Nesse momento o indivíduo do fato branco, com a sua gravata preta fez um gesto com indicador esquerdo e o indivíduo sentado na cadeira branca soltou um urro de dor e desespero.
-Senhor Tungsténio, como pode constatar temos meios de lhe prolongar o sofrimento ad eternum. Não me olhe com esse ar. Sabemos que conhece a expressão. Sim também já os lemos! Afinal porque os iríamos proibir? Se as massas se afastavam deles com toda a naturalidade, qual a necessidade de nós nos opormos? Não... Foi muito mais fácil ir com elas e mostrar-lhes todos os pontos negativos...
A verdade senhor Tungsténio, é que o senhor, na sua estupidez de cidadão classe 6 tem o privilégio de receber uma educação. É-lhe dito como se deve comportar e como deve desempenhar as suas tarefas para melhor servir os interesses superiores dos grandes mestres da classe 1e, acima de todos os outros, o nosso grande Hidrogénio.
Quer que lhe diga a verdade sobre como foram proibidos? Eu conto-lha pois estive lá nesse dia que tantas alegrias trouxe às nossas vidas, o dia da Fundação. Era sabido que as massas cada vez mais se afastavam deles. Cada vez era mais fácil fazer com que os jovens não os lessem, os nossos agentes no sistema de ensino tratavam disso. Os agentes infiltrados na cultura trataram de fazer com que quem os escrevia bem e perigosamente fosse, passo a passo, tendo menos vontade e os que não se tornaram partidários da Causa foram desaparecendo, absorvidos pela G.R.U.P.E.S., ou morrendo. Sim, muitos eram velhos. Tinham lido obras perigosas, convivido com ideias perigosas, conhecido fulanos perigosos, mas não eram perigosos, apenas escreviam coisas perigosas o que, com o afastamento dos livros, perdeu toda a periculosidade que poderia ter, já ninguém ligava ao que eles diziam, eram uns maluquinhos.
No entanto você aqui está. E como você muitos outros já estiveram e muitos mais estarão. São uma minoria. Sempre foi assim, não se espante. Se já leu os mais marcantes sabe que quem os lê são sempre as minorias. Porque é que você pensa que hoje está aqui? Porque no passado as maiorias Os liam? Não senhor Tungsténio... No passado havia uma coisa chamada Democracia e nessa coisa quem mandavam eram as maiorias. Esclarecidas ou não! Foi fácil chegarmos onde chegámos. Bastou não educar as maiorias. Esclarecidos sempre os houve, mas eram cada vez menos, porquê preocuparmo-nos com eles? Um dos livros encontrados em sua casa fala de um conceito que parecendo vago é o móbil da nossa sociedade: panem et circenses. Pão e circo, comida e novelas. A causa da decadência da sociedade retrógrada que se chamavam opulentemente a si mesmos o Mundo Ocidental. Hoje digo-lhe, essa lógica foi a semente do nosso sistema, da nossa Sociedade.
O seu problema começa mesmo aqui. É que numa sociedade não esclarecida não há lugar para mentes iluminadas. As mentes iluminadas ou subjugam os não-esclarecidos, as classes inferiores, ou desaparecem. O senhor, já há muito tempo que só escreve em papel. Certamente apercebeu-se de que a informação mudava de dia para dia. Que os amigos de hoje são os inimigos de amanhã. Nada de novo no entanto, como certamente já leu... Você pode então escolher desterro para uma das reservas ou mudança. Mudar para melhor. Vamos limpar-lhe a mente de todas essas mesquinhices fúteis e irrelevantes e será como eu. Branco. Puro.
-O senhor disse que me dava a escolher?
-Dou pois. Quem chega ao seu nível pode escolher. Pode ir viver com os animais como você que vivem nas reservas e que nós caçamos ao décimo oitavo dia, por pura diversão. Você sabe do que falo. Já participou em caçadas...
-No entanto escolho as reservas da liberdade, do que a morte da libertinagem.
-Não é que não contássemos com isso… Você sabe como a gente como o senhor é previsível? Seja então a reserva...

Foram num jipe, um veículo pré-histórico que apenas servia para transportar os exilados até aos portões das reservas. No horizonte um vazio. A todo o redor uma cerca de cinquenta metros de altura e muitos quilómetros de arame, betão e tijolos. Um portão erguia-se, com as suas duas enormes torres de vigia. Por cima do portão, em letras luminosas podia-se ler as palavras: Reserva Lusitânia.
Tungsténio foi atirado, com um pontapé, para o interior da reserva e assim que os portões se lhe fecharam nas costas, viu à sua frente alguém, vestido de peles, com barba preta até ao umbigo e que lhe deu a mão e o ajudou a levantar. Ainda antes das saudações, esse alguém apontou para o portão imponente, fechado e frio. Por trás deste alguém escrevera a sangue:
“No princípio era o Verbo e o verbo trouxe o Pensamento. Fomos ganhando Força e decidimos passar à Acção. No fim, é o verbo que nos mata...”

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